Introdução
A questão discutida neste capítulo é a de saber que forma poderia adotar um sistema de tributação no governo moderno, pelo menos em alguns aspetos, se fosse influenciado por uma visão Católica. Para o fazer, contudo, temos de ser claros sobre o papel que o governo deve desempenhar na nossa vida comum e sobre o significado de justiça na tradição Católica.
A questão política central, tanto como problema teórico como problema prático, que tem ocupado a cultura ocidental nos tempos modernos (e que, de facto, ajudou a definir a modernidade) é a de saber se uma população virtuosa é uma condição necessária para uma ordem social justa ou se uma ordem social justa pode ser concebida e imposta a uma população para que esta se torne virtuosa. Os efeitos práticos deste debate contínuo moldaram a maior parte dos principais conflitos e distúrbios políticos dos últimos 250 anos, desde as revoluções americana e francesa do século XVIII, passando pela ascensão do socialismo no século XIX, a emergência do fascismo e da guerra fria no século XX e a polarização cultural do início do século XXI. A posição adotada molda inevitavelmente a resposta a qualquer pergunta sobre o papel do governo na sociedade.
O debate tem raízes mais profundas do que é normalmente pensado e, na sua manifestação atual, tem a ver com muito mais do que o modo como a sociedade pode distribuir de forma justa os benefícios da modernidade. As revoluções americana e francesa prepararam, essencialmente, o terreno. Por um lado, a revolução americana procurou separar uma pequena população colonial de uma grande potência imperial e, ao mesmo tempo, adaptar uma forma de governo familiar às condições do Novo Mundo. Por outro lado, a revolução francesa procurou derrubar uma ordem social e política existente e refazer a cultura o mais profundamente possível. No primeiro caso, os fundadores da república americana eram realistas determinados a criar uma estrutura política adaptada à população e indeterminados, embora esperançosos, sobre o que o povo faria dela. No segundo, os republicanos franceses estavam determinados a criar uma nova ordem social e a forçar a população a conformar-se com ela. Estas duas abordagens, uma centrada em condições iniciais realistas e outra num estado final ideal (e implacável na sua prossecução), descrevem as opções políticas características da modernidade.
É possível argumentar que ambas as escolhas derivam de uma visão mais completa e mais robusta da sociedade oferecida pela tradição social Católica, mas que ambas também exageram alguns aspetos desta tradição à custa da supressão de outros elementos importantes.
O governo e os bens comuns da sociedade
John Courtney Murray, um proeminente teólogo jesuíta de meados do século XX, observou uma vez que “a sociedade civil é uma necessidade da natureza humana antes de se tornar objeto da escolha humana” (Murray, 1960, 7). Com esta ideia, Murray queria dizer que a sociedade humana não é um artefacto de deliberação, mas antes o resultado de uma inclinação natural dos seres humanos para se associarem uns com os outros e assumirem parte da sua identidade com esta associação. O facto de termos esta inclinação é mais uma manifestação da nossa natureza como feita à imagem de Deus, que também é inteligente, livre e social (afinal, Deus é uma Trindade).
Esta sociedade civil é o contexto social em que a maioria de nós vive a sua vida. Contém muitas formas de associação humana, incluindo famílias, associações voluntárias de vários tipos, organismos governamentais e, em alguns aspetos, a Igreja (que é um tipo especial de sociedade).
As sociedades são amplas. São a forma mais abrangente de vida em comum, contendo outras formas de associação como se elas fossem órgãos dentro de um corpo. Este último aspeto é importante pois marca a distinção entre uma sociedade naturalmente saudável e uma sociedade que tende para o totalitarismo.
Uma sociedade saudável é muito mais do que um agregado de membros individuais, cada um procurando de modo independente a sua própria forma de realização. Em vez disso, os membros da sociedade encontram grande parte da sua identidade e realização na e através da sua participação num amplo conjunto de grupos sociais. Numa sociedade saudável, os órgãos principais – famílias e associações voluntárias – têm funções próprias que servem direta ou indiretamente o bem comum. São funções que lhes pertencem enquanto comunidades naturais (as famílias, em particular) ou enquanto associações deliberadas, com objetivos e operações escolhidos.
Um órgão distintivo da sociedade é o governo. Nenhuma sociedade civil pode servir as necessidades dos seus membros ou manter-se estável sem governo. Até certo ponto, é mesmo preferível um mau governo a não ter qualquer governo. Contrariamente a uma famosa observação do revolucionário americano Thomas Paine,[1] o governo não é um “mal necessário”, mas o seu correto funcionamento é necessário para assegurar os bens comuns da sociedade civil (Paine, 1776, capítulo 1). No entanto, Paine estava correto ao observar que os governos, por vezes, não funcionam bem e que o seu desempenho é tão importante para o bem-estar humano que o seu fracasso exige uma solução.
É importante que o governo seja entendido como um órgão da sociedade, nem idêntico à sociedade nem superior a ela. É o órgão pelo qual a sociedade exerce a autoridade ao serviço dos bens comuns da paz social e amizade cívica.[2] Embora o governo deva ser parte integrante de qualquer sociedade civil, não é nem pode ser o todo, nem responsável por todos os elementos da vida privada e social. Numa sociedade saudável, há muitas coisas que devem estar fora das preocupações e atividades normais do governo, devendo ser resolvidas pelas famílias e associações voluntárias como parte das suas funções próprias.[3]
A função própria do governo
Se o governo é um órgão da sociedade, qual é, então, a sua função? É estabelecer e assegurar o bem comum instrumental da sociedade civil. Qualquer associação humana, temporária ou permanente, caracteriza-se por, pelo menos, dois tipos de bens comuns, um instrumental e outro final.[4] Um bem comum instrumental é um meio, ou um objetivo intermédio, que permite aos membros de uma associação trabalharem para os seus objetivos últimos, que são os bens finais.
No caso da sociedade civil, o bem comum instrumental, a que poderíamos também chamar paz social, é, numa expressão de Santo Agostinho, a “tranquilidade da ordem”. Nas palavras do Papa S. Paulo XXIII, esta ordenação da sociedade “compreende o conjunto das condições sociais que permitem e favorecem nos homens o desenvolvimento integral da personalidade”.[5] Naturalmente, o objetivo a que se dirige este bem instrumental é o desenvolvimento integral de todos e de cada um dos membros da comunidade, que é um dos bens comuns finais da sociedade.
Devemos notar que este bem comum instrumental constitui um conjunto de condições, e não um conjunto de resultados. É uma parte essencial da dignidade humana – como sabem todos os pais de uma criança de dois anos – termos agência, não sermos meros observadores passivos da vida ou estarmos sempre sujeitos ao arbítrio de outros. De acordo com este ponto de vista, que a Igreja tem sublinhado repetidamente, a função própria e essencial do governo em qualquer sociedade é assegurar as condições que tornam possível aos indivíduos serem agentes de si mesmos, das suas famílias, dos seus amigos e das suas comunidades. Por outras palavras, a função adequada do governo não é garantir resultados, mas sim estabelecer justiça e paz (e providenciar soluções para as violações de justiça), remover impedimentos ao florescimento sempre que possível e providenciar certos tipos de apoio sempre que necessário.[6]
Também precisamos de ser claros quanto ao significado de desenvolvimento humano. Na sua encíclica de 1967, Populorum progressio, o Papa S. Paulo VI advertiu contra o entendimento de desenvolvimento humano em termos simplesmente materiais, como se não fosse mais do que uma questão de produção, posse e consumo. Em vez disso, influenciado pelo filósofo francês Jacques Maritain, o Papa enfatizou o desenvolvimento humano integral, que promove “todos os homens e o homem todo”.[7] Alguns anos mais tarde, S. João Paulo II recordou-nos que o erro fundamental do socialismo é de “caráter antropológico”.[8] Ou seja, baseia-se numa noção errada da pessoa humana e, em consequência, os objetivos e funções que eram atribuídos ao governo foram frequentemente destrutivos do desenvolvimento humano, em vez de o apoiarem.
Os erros específicos do socialismo – reduzir a pessoa a “uma molécula do organismo social”,[9] conceber o desenvolvimento em termos estritamente materiais, negar a importância da agência e da liberdade – não são os únicos erros fundamentais que uma cultura pode cometer. As próprias culturas ocidentais cometem certamente erros cruciais que prejudicam gravemente pessoas reais e também resultam no desalinhamento das funções governamentais. O reconhecimento deste facto, juntamente com milénios de experiência, deveria levar-nos a adotar uma certa humildade quanto à forma como um governo ou uma sociedade pode estabelecer o bem comum.
O que seria, então, um melhor fundamento para a sociedade? Quais seriam as componentes de uma visão melhor e mais autêntica da pessoa? Poderia começar com a convicção de que cada vida humana, sem exceção, tem uma dignidade irredutível que exige respeito mesmo dos poderosos. Significaria reconhecer que as pessoas humanas são, por natureza, inteligentes, sociais e capazes de escolher livremente. Deveria reconhecer que as vidas humanas não são enriquecidas apenas por necessidades materiais, mas também pelas coisas do espírito, pela verdade, pela bondade e pela beleza. Respeitaria a contribuição indispensável das famílias, que nos educam e nos preparam para nos desenvolvermos e enriquecermos participando em associações voluntárias e comunidades políticas. E poderia, em casos excecionais, admitir que cada pessoa tem um destino transcendente.
Uma visão fundamental deste tipo moldaria e informaria as funções próprias que são as operações básicas do governo. Por funções próprias, queremos dizer aquelas que estão diretamente relacionadas com a preservação da paz e do(s) bem(ns) comum(ns) da sociedade; são os veículos através dos quais a sociedade exerce legitimamente autoridade sobre os seus membros, para ordenar e coordenar as suas atividades; e são normalmente reservadas exclusivamente ao estado.[10] Uma lista dessas funções pode ser facilmente compilada considerando a divisão principal das operações governamentais em legislativa, executiva e judicial. Essa lista incluiria a determinação das leis que regem a comunidade, a aplicação dessas leis, a diplomacia, a defesa da comunidade, a gestão dos recursos públicos e a adjudicação.
No entanto, na maioria das sociedades, a lista de funções do governo não termina aqui. Num grande número de casos, especialmente no contexto moderno, as sociedades optam por delegar no estado uma série de funções que antigamente eram desempenhadas por associações privadas. Estas funções delegadas podem incluir a administração de benefícios sociais, educação formal, prestação de cuidados médicos, construção e manutenção de infraestruturas de transporte, serviços postais, bancos centrais, serviços de utilidade pública e serviços de segurança pública. Muitas vezes, a delegação não é exclusiva, pelo que as associações privadas podem também continuar a exercer estas atividades. A questão, porém, é que esta delegação é uma escolha, feita pela sociedade ou pelas autoridades civis. O facto de o governo assumir estas funções pode ser, ou não, uma decisão sensata ou prudente, mas dada a responsabilidade democrática dos governos, estas funções fazem parte do conjunto de coisas que a sociedade, através do processo democrático, pode delegar no governo. Neste aspeto, diferem de uma terceira categoria de funções governamentais.
A terceira categoria surge, na minha opinião, devido a uma mudança subtil no nosso entendimento do que é o governo. A tradição social Católica, como já sugeri, considera que o objetivo das operações governamentais é estabelecer e assegurar as condições públicas necessárias ao desenvolvimento humano. Mas a terceira categoria abraça a ideia de que é responsabilidade do governo assegurar os resultados. Como consequência, assistimos ao aparecimento de funções assumidas pelo governo.
A tradição Católica, pelo menos desde Santo Agostinho no século V, tem sido cética sobre a possibilidade de aperfeiçoar a Cidade dos Homens. Se a cidade dos homens fosse povoada maioritariamente por santos, especulava Agostinho, talvez fosse possível algum tipo de perfeição, mas como os santos nunca são muito numerosos, as sociedades humanas serão sempre corrompidas.[11] Contudo, enquanto habitarmos a cidade dos homens, não podemos ser indiferentes ao efeito da cultura nos indivíduos.
A este respeito, a tradição Cristã tem adotado uma estratégia dupla. Através da sua doutrina e dos seus sacramentos, tem procurado imunizar os indivíduos contra o pior da cultura secular e incutir-lhes bons hábitos espirituais e morais. E através das obras de caridade, tem procurado aliviar o sofrimento pessoal e oferecer um exemplo para inspirar melhorias na cultura. No final, a medida do seu sucesso não está na conversão das culturas (embora isso não seja de excluir) mas na santidade dos indivíduos.
Nos últimos dois séculos, porém, uma visão diferente enraizou-se na cultura ocidental, sobretudo com a revolução francesa do século XVIII e os seus imitadores do século XX. Um dos compromissos fundamentais destes movimentos era a convicção de que, apesar das fraquezas e pecaminosidade dos indivíduos, a própria sociedade poderia ser aperfeiçoada através da transformação inteligente das estruturas e das práticas, a que se seguiria a melhoria dos indivíduos. Para isso, seria necessário aproveitar a autoridade e o poder do governo, o único que poderia reunir os recursos necessários para o projeto e exercer o poder necessário para garantir a sua execução. Naturalmente, uma vez lançado nesta direção, o governo teria de assumir uma variedade de funções relacionadas com os seus novos deveres para garantir os resultados adequados.
Desta forma, enquanto a conceção Católica de dignidade humana considera a pessoa como inteligente, livre e social e, portanto, como um agente responsável, esta nova conceção da sociedade começou por ter em mente uma estrutura social ideal, encarregando o governo de a construir e de adaptar os indivíduos a essa nova ordem. Não é de estranhar que esta nova ordem exigisse também novas formas de justiça.
Justiça social e justiça distributiva
No domínio da ética social, não há palavras mais equívocas do que as associadas ao conceito de justiça. Não é por acaso que A República de Platão começa com Sócrates a perguntar: “O que é a justiça?”. Sempre houve uma série de respostas a esta questão, mas a tradição ocidental aceitou geralmente a definição dada pelo jurista romano Ulpiano: “a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu”.[12] Por outras palavras, a justiça é, na sua raiz, uma qualidade da vontade pela qual uma pessoa está disposta a dar aos outros o que eles merecem ter. É uma virtude que preserva uma espécie de igualdade e de harmonia entre as pessoas.
Contudo, na segunda metade do século XIX, uma conceção diferente de justiça foi proposta de forma agressiva, especialmente entre economistas e juristas da tradição anglo-americana. Enquanto o entendimento clássico era claro quanto ao facto de a justiça ser principalmente uma qualidade das ações humanas e apenas secundariamente uma avaliação dos resultados, o novo pensamento inverteu esta prioridade. A justiça passou a ser, em primeiro lugar, uma avaliação de situações e condições, em particular das desigualdades evidentes na sociedade, e, em segundo lugar – e inevitavelmente –, um juízo sobre a responsabilidade pessoal e coletiva. A diferença é subtil, mas poderosa.
Na tradição clássica, era perfeitamente possível distinguir entre situações injustas e situações infelizes. Indivíduos e grupos que sofreram uma injustiça grave podiam normalmente identificar as pessoas responsáveis e, pelo menos em princípio, recorrer ao sistema judicial para obter uma reparação. Mas a experiência ensina-nos que, muitas vezes, indivíduos e grupos podiam sofrer de acontecimentos fortuitos – clima, terramotos, doenças, etc. – que não resultavam de ações injustas causadas por alguém.[13] Em muitas sociedades, a solução para estas situações não é o recurso à lei, mas expressões de generosidade e beneficência – uma dádiva, não um ato de reparação ou restituição.
Na nova forma de pensar, porém, presume-se que as diferenças sociais de todo o tipo são injustiças, e não apenas infortúnios ou consequência de más decisões tomadas pelos próprios afetados. Seguindo este raciocínio, tais situações conduzem a apelos à ação do governo para fornecer uma solução (e, muitas vezes, medidas preventivas, para evitar que tais situações se repitam). Demasiadas vezes, portanto, desafios que poderiam ser enfrentados num espírito de generosidade e cooperação tornam-se ocasiões de conflito e acusação. No contexto do nosso tema, isto pode ser verdade em relação a questões de justiça distributiva e justiça social, em que a tributação é promovida como um instrumento corretivo, pelo que é necessária uma análise mais aprofundada desses termos.
A tradição moral Católica contemporânea tem sido afetada pelas controvérsias seculares sobre justiça. Nas últimas décadas, vozes desta tradição adotaram uma ou outra definição secular, mas a tradição moral clássica, que foi geralmente aceite até meados do século XX, continua a constituir o fundamento para a doutrina Católica em matéria de justiça.[14]
Esta tradição clássica, explorada por Tomás de Aquino e muitos outros, divide a justiça em duas grandes categorias, ao considerar, em primeiro lugar, os que seriam objeto de ações justas (aqueles cujos interesses devem ser tidos em conta) e, em segundo lugar, os sujeitos, cujas escolhas e ações devem ser moldadas pelos princípios de justiça. A primeira categoria de justiça é a justiça particular, em que as pessoas a quem algo é devido podem, em princípio, ser enumeradas e identificadas. Pode tratar-se de um indivíduo em particular, membros de um grupo específico ou mesmo alguns dos membros da comunidade civil.
A justiça particular divide-se ainda em dois tipos. No primeiro, que é comummente designado por justiça comutativa, as pessoas que devem agir com justiça têm como objetivo preservar ou restabelecer a igualdade com a outra parte. Se, por exemplo, eu receber um pão de um padeiro, a nossa relação é desigual (injusta) até que eu lhe dê uma soma de dinheiro igual ao valor comum do pão. Ou se eu danificar a vedação do meu vizinho, a nossa relação é desigual até eu reparar os danos ou compensar, de outra forma, o meu vizinho.
Mas as pessoas também podem agir a título distinto, como representantes de um grupo (seja uma família, uma associação voluntária ou uma sociedade civil) com responsabilidade para gerir os recursos e as exigências do grupo em relação aos seus membros. Por exemplo, os gestores de uma empresa devem decidir como distribuir os fundos disponíveis para compensar os trabalhadores. Para agir com justiça, devem tratar da mesma forma os trabalhadores que são iguais em aspetos relevantes, enquanto podem, e muitas vezes devem, tratar de forma diferente os trabalhadores que são diferentes (mais produtivos, com maiores responsabilidades). Este tipo de justiça é designado por justiça distributiva.
E é aqui que encontramos a primeira grande fonte de confusão nas discussões contemporâneas sobre justiça. O entendimento clássico (e, poderíamos dizer, correto) de justiça distributiva é que esta diz sempre respeito à atribuição de um benefício ou encargo aos membros de um grupo a partir do que pertence ao próprio grupo ou do que este tem o direito de dispensar ou exigir. Estritamente falando, nunca é uma questão de justiça distributiva pegar no que pertence a outro e atribuí-lo a terceiros.
O problema moderno é que, na sequência da inversão do entendimento de justiça, a justiça distributiva passou a significar, com demasiada frequência, uma tentativa por parte do governo para remediar ou corrigir uma distribuição desigual de um recurso, que nem o governo nem a sociedade possuem, de um grupo para outro.[15] O simples facto de haver uma disparidade pode ser suficiente para exigir uma ação que restaure a justiça distributiva, mesmo quando nenhuma injustiça real pode ser identificada como causa da disparidade.[16]
A segunda grande categoria de justiça é o que a tradição designa por “justiça geral”. Os objetos que a justiça geral serve são os principais bens comuns da comunidade, e não indivíduos particulares e identificáveis. Mais uma vez, podem distinguir-se dois tipos.[17] O primeiro, frequentemente chamado justiça legal, tem como sujeito as autoridades civis responsáveis pela elaboração de leis e regulamentos vinculativos para a comunidade. Isto incluiria, em primeiro lugar, os membros das legislaturas e dos parlamentos, mas também o executivo, agências de regulação e outras que tenham poderes para estabelecer regras para a sociedade. A justiça legal obriga estes decisores a aprovarem leis e regulamentos que tenham verdadeiramente como objetivo servir os bens comuns da sociedade e não favorecer alguns membros à custa de outros. Esta mesma forma de justiça obriga aqueles que estão sob a jurisdição do governo, como sujeitos secundários, a obedecer às suas leis e regras.
É o segundo tipo de justiça geral que suscita alguma confusão. Sem entrar em grande detalhe, podemos simplesmente dizer que este tipo de justiça tem como sujeito os membros da sociedade que têm o dever de agir em prol dos bens comuns, mesmo quando nenhuma lei ou regulamento específico o exija explicitamente. A ideia aqui é que nenhum sistema legislativo consegue prever todos os conjuntos possíveis de circunstâncias, mas que, como criaturas sociais, os indivíduos têm responsabilidades para com as suas comunidades – ou, mais precisamente, para com os outros membros das suas comunidades – que os obrigam a considerar os bens comuns.
É no contexto da justiça geral (comum) que temos de considerar a ideia de justiça social. A justiça social tornou-se um nome para um objetivo que deveria receber o apoio de todos os membros da comunidade que pensam corretamente – mas é um objetivo que não tem uma definição aceite. Na sua maioria, os defensores da justiça social parecem entendê-la como um nome para uma igualdade maior na sociedade ou talvez como um nome para um estado de coisas em que a injustiça é totalmente eliminada. Podemos fazer melhor do que isto. Podemos dizer que, na tradição social Católica e no quadro analítico que temos discutido, a justiça social é um sinónimo do bem comum instrumental da sociedade. Ou, como virtude pessoal, a justiça social é sinónimo da virtude da solidariedade, como definida pelo S. João Paulo II em Sollicitudo rei socialis (38): “a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum”. De qualquer modo, no contexto da tradição social Católica, a justiça social deve ser entendida como uma dimensão de justiça geral, não como uma forma nova e distinta de justiça. Além disso, embora a procura por justiça seja essencial para a promoção do bem comum, nunca é suficiente. A justiça deve ser complementada pela prática da caridade,[18] por um genuíno amor pelo outro, que não só dá aos outros o que é deles, mas também lhes dá o que é meu.[19]
A política fiscal no pensamento social Católico
A nossa visão da pessoa humana, da natureza do desenvolvimento humano e das funções do governo vai determinar as nossas preferências em matéria de tributação. A questão que se coloca é, então, a seguinte: que forma geral poderiam as políticas de tributação assumir se fossem influenciadas pela tradição social Católica?
O magistério tem tido relativamente pouco a dizer diretamente sobre tributação. Quando os teólogos abordaram o tema, foi frequentemente para discutir a obrigação dos cidadãos de pagar impostos, sem explorar em detalhe o que seria uma tributação justa e sensata.[20] Contudo, com base na nossa discussão sobre o bem comum, a justiça e o papel do governo, podemos efetivamente dar uma resposta a essa questão.
Em primeiro lugar, e independentemente de outros objetivos que possa prosseguir, a cobrança de impostos deve ser justa e eficiente. A discussão de Adam Smith em A Riqueza das Nações é um resumo de princípios bem conhecido e amplamente aceite. O autor propõe que as contribuições fiscais devem ser claras e certas, proporcionais à capacidade de pagamento do contribuinte, convenientes quanto ao prazo e modo de pagamento e não desperdiçadoras no método (de modo a não retirar aos contribuintes mais do que o necessário).[21] Poder-se-ia acrescentar que as contribuições fiscais devem tratar da mesma forma todos os contribuintes que se encontram numa situação semelhante de modo a respeitar a justiça distributiva.
Em linhas gerais, contribuições fiscais são impostas com três tipos de objetivos. O primeiro consiste em angariar receitas para obter os recursos destinados a suportar as atividades normais de governação. O segundo consiste em influenciar comportamentos para estarem de acordo com objetivos legislativos. O terceiro consiste na redistribuição por forma a transferir riqueza de proprietários privados para outros elementos da comunidade visando uma maior igualdade. Analisaremos cada categoria separadamente, tendo em consideração que o segundo objetivo é menos relevante para a nossa análise (embora sujeito a muitos abusos), pelo que os comentários se centrarão fundamentalmente nas receitas e na redistribuição.
Tributação e angariação de receitas
A categoria das receitas é fundamental e tem estado no centro da maioria das discussões sobre o dever de pagar impostos. O governo tem o dever, provavelmente mais vezes defendido do que praticado, de ser cauteloso nas suas exigências de financiamento por forma a deixar em mãos privadas, na medida do possível considerando o bem comum, a maior parte da riqueza do país.[22] Quanto mais o governo cobra em impostos, menos os pobres têm para satisfazer as necessidades das suas famílias, menos os mais abastados têm para ajudar os outros e, em alguns casos, mais tempo as pessoas têm de trabalhar para ter um nível de vida decente, logo reduzindo potencialmente o tempo que podem passar com as suas famílias, a cuidar das crianças e dos mais velhos, etc.
Em segundo lugar, é importante para a saúde de uma nação que os seus cidadãos participem nos assuntos públicos de forma adequada.[23] Uma dessas formas é partilhando o ónus de suportar, através dos impostos, as funções legítimas do governo. Os cidadãos que não têm qualquer obrigação prática de o fazer estão excluídos deste modo de participação, logo sentem-se mais afastados dos assuntos da governação e têm, na verdade, poucas razões para se preocuparem com o facto de os membros do governo moderarem as despesas. Isto é particularmente perverso numa democracia, pois, como observou Aristóteles, a tentação perigosa numa democracia é a maioria procurar adquirir a riqueza de uma minoria. Se a maioria, ou uma quase maioria, não tiver a obrigação de pagar um qualquer nível de imposto, a sua opinião sobre os assuntos públicos pode ser facilmente influenciável por líderes que prometem benefícios cuja fatura nunca chega a ser paga.[24]
Um terceiro tópico que importa analisar refere-se ao facto de qualquer decisão sobre contribuições fiscais exigir sabedoria prática e equilíbrio. Raramente há unanimidade entre os legisladores sobre que programas devem ter prioridade nas despesas públicas e qual o nível de apoio. Raramente existe apenas uma resposta correta ou melhor para os desafios que uma comunidade enfrenta. As comunidades são, e devem ser, livres de determinar por si próprias que acomodações e compromissos parecem ser os melhores a fazer perante as circunstâncias. E, ao negociarem esses compromissos, os cidadãos devem lembrar-se de que os seus vizinhos podem ter, de boa-fé, opiniões muito diferentes. De facto, é porque as pessoas têm, legitimamente, opiniões diferentes que as coisas pelas quais o governo assume responsabilidade devem ser limitadas, ao contrário do que acontece com outros organismos sociais.
As questões relativas ao objetivo de obtenção de receitas dividem-se, geralmente, em quatro categorias (por vezes, sobrepostas) e relacionam-se com a distribuição de encargos, benefícios, isenções e subvenções.[25]
Para os particulares, a carga fiscal é geralmente distribuída, no mínimo, de forma proporcional e, frequentemente, de forma progressiva. Existem, geralmente, duas orientações na distribuição da carga fiscal. Uma delas, que é amplamente aceite, modera (ou mesmo elimina) as obrigações fiscais para as pessoas com rendimentos modestos ou recursos limitados. A outra impõe uma taxa mais elevada do que a média aos indivíduos com maiores recursos. A Igreja aprova a primeira, mas disse pouco sobre a segunda. O desejo de assegurar que os encargos são suportados por aqueles que podem contribuir leva frequentemente a que uma proporção muito elevada da tributação seja paga pelos muito ricos. Nos Estados Unidos, nos últimos anos, os contribuintes com um rendimento que os coloca entre os 25% mais ricos são responsáveis por quase 90% das receitas do impostos federal sobre o rendimento das pessoas singulares; e os que se encontram entre os 50% com rendimento mais baixo pagam menos de 3%.[26] As críticas dos políticos que acusam as pessoas com rendimentos mais elevados de não “pagarem a sua parte” distorce esta realidade.[27] Mas se estas pessoas aceitam pacificamente este encargo maior, talvez por reconhecerem que uma sociedade desenvolvida lhes oferece oportunidades que outras não ofereceriam, então é difícil argumentar que esta distribuição de encargos é injusta. Mas devemos ponderar se uma distribuição tão distorcida conduz a uma sociedade onde todas as partes têm um entendimento partilhado do bem comum. Para atenuar esta situação, convém notar que as pessoas com rendimentos mais baixos pagam uma proporção maior de outras contribuições (como o imposto sobre o valor acrescentado) do que de imposto sobre o rendimento.
Em suma, e na perspetiva da tradição social Católica, a orientação relativa à tributação progressiva tem um apoio sólido (desde que sujeita a bom senso na execução), mas o conjunto de impostos regressivos, especialmente quando são mais do que de minimis, pode constituir um desafio à justa distribuição dos encargos de apoio ao governo.
Tributação para influenciar comportamentos
Quando se trata de utilizar o sistema fiscal para influenciar comportamentos, são empregues vários meios para encorajar comportamentos ou resultados preferenciais. É comum que as pessoas que fazem donativos a organizações de caridade e sem fins lucrativos aprovadas possam deduzir parte ou a totalidade do montante do donativo do seu rendimento tributável. O objetivo desta medida é encorajar o apoio privado a este tipo de organizações, considerando não só que este apoio é frequentemente mais eficaz do que o apoio estatal, mas também que poderá beneficiar muitas organizações que, de outra forma, dificilmente receberiam apoio público. Além disso, aqueles que doam o seu rendimento a essas causas, de acordo com o que acreditam ser os seus deveres para com os outros na sociedade, deixam de ter esse rendimento disponível para si mesmos, pelo que não deve ser tido em conta na determinação da carga fiscal. Os impostos também podem ser concebidos por forma a incentivar o apoio a setores favorecidos pelo legislador (como, por exemplo, a energia verde) ou para penalizar outras formas de consumo (como o tabaco).
Se partirmos do princípio de que a necessidade de recursos do governo é constante (independentemente das receitas efetivas), então estes benefícios fiscais transferem parte do ónus de sustentar o governo daqueles que se qualificam para obtê-los para aqueles que não o fazem. Não há dúvidas de que a Igreja aprova os benefícios para os donativos que recebe, mas não apenas para esses donativos e não apenas por interesse próprio. Uma visão orgânica da sociedade leva-nos a preferir uma comunidade na qual muitas atividades de utilidade pública são organizadas e apoiadas por cidadãos privados: nem tudo deve ser feito pelo governo. Reconhecemos também a importância da virtude da beneficência, pela qual os indivíduos constatam o seu dever de utilizar bem a riqueza e são encorajados a fazê-lo.
Ao mesmo tempo, temos de reconhecer que o poder de oferecer benefícios em prol do bem comum também pode ser mal utilizado para favorecer indivíduos e grupos que prejudicam o bem comum. Indústrias e organizações que podem pagar lobbying profissional podem assegurar benefícios que apoiem diretamente os seus negócios, reduzindo os seus custos. Isto pode dar-lhes uma vantagem sobre os concorrentes, o que pode ser injusto; pode, pelo menos, transferir os custos para os contribuintes. Este caso seria suscetível de constituir uma violação da justiça distributiva, mas, mais uma vez, o contexto é importante. O princípio decisivo é o de que o bem comum seja servido.
As isenções fiscais ou outras formas de benefícios fiscais são também frequentemente estendidas a atividades de organizações sem fins lucrativos aprovadas (por exemplo, isentar as propinas do ensino superior de IVA ou permitir que não paguem impostos sobre o retorno dos investimentos). O objetivo da isenção é encorajar a formação e funcionamento de associações privadas cujo propósito é servir o bem comum em áreas definidas. Mais uma vez, a doutrina Católica aprovaria o espírito destas isenções, embora algumas tenham sido criticadas nos últimos anos. As últimas décadas foram particularmente benéficas para um punhado de grandes universidades privadas, que, por exemplo, conseguiram acumular enormes dotações.[28] Algumas vozes têm questionado se a transferência de custos ocasionada por estas isenções é necessária e sensata. Em resposta, muitas instituições começaram a fazer pagamentos voluntários às autarquias para ajudar a cobrir as despesas públicas das suas atividades. Como muitos edifícios da Igreja ocupam terrenos valiosos nas cidades (terrenos que estão isentos de obrigações fiscais), é de esperar que, no futuro, surjam movimentos que pressionem para que o seu estatuto de isenção fiscal seja repensado.
A última categoria é a das subvenções ou subsídios, que partilham algumas características com os benefícios e as isenções. As subvenções destinam-se a apoiar financeiramente indivíduos e famílias ou grupos em contrapartida pelo serviço ao bem comum que providenciam ou como compensação por encargos suportados ou impostos em nome do bem comum.
Podem assumir várias formas, como isenções tributárias ou pagamentos administrados pelos serviços fiscais do estado. Um exemplo muito comum são os benefícios oferecidos aos pais como apoio à contribuição que oferecem ao bem comum quando têm filhos. Neste contexto, importa referir que as políticas fiscais devem ter o cuidado de não desencorajar inadvertidamente (e muito menos deliberadamente) o casamento e a constituição de família. Nas últimas décadas, temos assistido a algumas políticas fiscais que, em alguns casos, penalizam efetivamente o casamento ou recusam mesmo isenções para os dependentes se a família for demasiado grande. Na maioria dos casos, estas medidas não foram intencionais, mas os governos nem sempre foram rápidos a adotar as correções necessárias. Tomar em consideração os dependentes na determinação do montante de imposto que uma família paga pode ser justificado com o objetivo de assegurar que o sistema fiscal reflete capacidade de pagar e de contribuir para os serviços partilhados que o estado financia através da sua função de angariação de receitas. Embora este ponto possa ser debatível, é possível defender que o rendimento tributável de um agregado familiar deve refletir não só os seus meios financeiros, mas também as obrigações que têm de ser satisfeitas com esse rendimento, como as que resultam de criar filhos.
Quando os governos exigem sacrifícios para a proteção do bem comum ou, na verdade, para a preservação do estado, podem também oferecer compensações às pessoas afetadas. Este raciocínio pode justificar pensões de guerra e a subvenção de empresas que são obrigadas a suspender a sua atividade durante a ameaça de uma pandemia como a Covid-19.
Tributação para efeitos de redistribuição
Um terceiro objetivo das obrigações tributárias é combater a desigualdade de riqueza, retirando riqueza privada, através dos impostos, daqueles que têm mais para dar àqueles que têm menos. Avaliar uma tal política coloca um dilema para a tradição Católica: se o respeito pela propriedade privada está profundamente enraizado na tradição, também o está o dever de ajudar os pobres. Clarificar o que este direito e este dever realmente exigem ajudar-nos-á a aliviar a maioria da tensão aparente e reduzir o assunto a uma questão de equilíbrio e julgamento.
A tradição Católica há muito que defende o direito de propriedade, mas, ao mesmo tempo, tem insistido que este direito tem limites.[29] O direito de propriedade não significa que os proprietários possam fazer com a sua propriedade o que quiserem. O Papa S. João Paulo II usou a metáfora de uma “hipoteca social” para descrever o direito que o bem comum tem sobre a propriedade privada.[30] A ideia-chave é a de que os indivíduos têm direito a possuir propriedade suficiente para viverem a sua vocação com dignidade, mas que a riqueza possuída para além de uma suficiência razoável deve estar ao serviço do bem comum. Se um vizinho está esfomeado e nós temos mais comida do que podemos consumir, temos o dever de a partilhar.
Dito isto, o direito de propriedade é um direito natural, não um direito criado e concedido pelo governo ou pela sociedade. Por conseguinte, o governo não pode suprimir este direito, embora o possa regular. Uma forma de regulação pode ser uma intervenção do governo pela qual a propriedade privada é retirada quando isso é estritamente necessário para garantir o bem comum. E quando o governo atua desta forma, há uma presunção comum de que tem o dever de compensar o proprietário pela perda da propriedade.
Contudo, a redistribuição intencional da riqueza coloca um problema algo diferente. Não se pode retirar a riqueza de particulares e, ao mesmo tempo, compensá-los pela perda dessa riqueza. Assim, o argumento tem de ser feito afirmando que esta apropriação coerciva serve o bem comum, pois a posse continuada de riqueza ou de propriedade por certos particulares é, em si mesma, uma ameaça ao bem comum. Ora, este é um argumento difícil de fazer e ainda mais difícil de defender como último recurso ou única opção.
Poderíamos defender esta posição demostrando, se fosse possível, que quando a desigualdade de riqueza atinge um determinado nível na sociedade, o descontentamento despertado pela inveja é muito suscetível de prejudicar gravemente o bem comum. Também se pode argumentar que o bem comum não é promovido quando nem todas as pessoas têm o suficiente para comprar bens de primeira necessidade. O governo pode estar a agir de forma responsável se redistribuir o rendimento e a riqueza em tais situações. Mas seria preferível dar incentivos aos indivíduos ricos para os levar a utilizar a sua riqueza de forma eficaz para o bem comum e reconhecer publicamente a sua beneficência.[31] Além disso, tanto a Igreja como os governos devem fomentar instituições de caridade e outras que ajudem a garantir alívio da pobreza e a promoção de uma vida plena sem a ajuda direta do estado.[32] Mas se se registarem grandes necessidades numa sociedade e os ricos se recusarem a servir o bem comum, então pode justificar-se uma ação coerciva – mas raramente.
Conclusão
Há setenta anos, o filósofo francês Jacques Maritain proferiu uma conferência em Chicago na qual refletiu sobre a sua recente experiência como um dos redatores da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (1948).[33] A sua atenção foi captada pelo facto de as várias pessoas que participaram no projeto serem provenientes de contextos culturais e intelectuais diversos.[34] Embora se tenha tornado rapidamente evidente que esta diversidade os impedia de chegar a uma base comum para o projeto, eles estavam, ainda assim, substancialmente de acordo quanto ao resultado. Por outras palavras, estavam de acordo quanto à articulação de uma lista de direitos humanos, mas não conseguiam chegar a acordo quanto a um conjunto comum de princípios teóricos onde basear esses direitos. Decidiram sensatamente reunir-se em torno da declaração de direitos e deixar de lado os desacordos sobre os seus fundamentos.
Para Maritain, tratou-se de mais uma prova, como se ele precisasse de alguma, de que há, de facto, um entendimento intuitivo da lei natural incrustada em cada coração humano, um entendimento que pode muitas vezes ser obscurecido ou distorcido pelo tipo errado de reflexão filosófica. Apesar da tendência moderna para uma visão turva da natureza e do destino da pessoa humana, subsiste ainda um profundo desejo por justiça e por um renovado respeito pela dignidade humana. O que é necessário, evidentemente, é um conjunto de soluções construtivas que clarifique esse desejo e o canalize eficazmente. A tradição da Igreja tem algo de importante a oferecer a este respeito, com uma visão clara da pessoa humana, da justiça e do bem comum, e do verdadeiro papel do governo numa sociedade boa. Mesmo que os fundamentos desta tradição não sejam partilhados, temos razões para estar confiantes de que a visão ressoa no coração humano. Devemos avançar com confiança para oferecer esta visão, e as suas implicações para os detalhes em áreas como a política fiscal, a um mundo confuso.
Referências
Calvez, J. I. e Perrin, J. (2019), “The Expression “Social Justice” before and after Quadragesimo anno,” Logos 22.2 (116-150).
Catholic Church (1994), Catechism of the Catholic Church, London: Geoffrey Chapman.
Crowe, M. T. (1994), The Obligation of Paying Just Taxes, CUA Studies in Theology, no. 84. Washington, DC: Catholic University of America Press.
Glendon, M. A. (2001), A World Made New, New York: Random House.
Kennedy, R. G. (2019), “Social Justice and Competing Visions of the Common
Good,” Logos 22.2 (106-115).
Maritain, J. (1951), Man and the State, Chicago, IL: University of Chicago Press.
Murray, J. C. (1960), We Hold These Truths: Catholic Reflections on the American Proposition, New York: Sheed and Ward.
Paine, T. (1776), Common Sense, Philadephia: W&T Bradford.
Pontifical Council for Justice and Peace (2005), Compendium of the Social Doctrine of the Church, London: Burns & Oates.
Smith, A. (1776), The Wealth of Nations, London: W. Strahan; and T. Cadell.
Encíclicas papais e outros documentos da Igreja referidos neste capítulo
Bento XVI, 2009, Caritas in veritate, carta encíclica:
João Paulo II, 1991, Centesimus annus, carta encíclica:
João Paulo II, 1987, Sollicitudo rei socialis, carta encíclica:
Paulo VI, 1967, Populorum progressio, carta encíclica:
https://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/encyclicals/documents/hf_p-vi_enc_26031967_populorum.html
Vaticano II, Gaudium et spes, 1965, Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo atual:
João XXIII, 1963, Pacem in terris, carta encíclica:
João XXIII, 1961, Mater et magistra, carta encíclica:
Pio XI, 1931, Quadragesimo Anno, carta encíclica:
Pio XI, 1937, Divini redemptoris, carta encíclica:
Leão XIII, 1891, Rerum novarum, carta encíclica:
Questões para discussão
Quais são as principais funções do governo de acordo com a Doutrina Social Católica?
Qual é a distinção entre “justiça distributiva” e “justiça social” na Doutrina Social Católica e de que modo “justiça social” difere da definição comummente utilizada no discurso secular?
Quais são os objetivos dos impostos?
Por que razão um Católico poderia apoiar isenções fiscais sobre o dinheiro doado a organizações de caridade?
Em que medida devem os governos utilizar os impostos para efeitos de redistribuição?
Notas de rodapé
[1] Embora tenha nascido, a 29 de janeiro de 1737, em Inglaterra, Thomas Paine tornou-se uma das mais importantes referências da revolução americana. Morreu a 8 de junho de 1809, em Nova Iorque. (N.T.)
[2] Jacques Maritain desenvolve a ideia de governo como um órgão da sociedade em Man and the State (1951, 42).
[3] O princípio da subsidiariedade, que reconhece o caráter orgânico da sociedade, é observado na prática, nomeadamente pelo governo, quando se promove o bom funcionamento dos órgãos da sociedade e se presta assistência quando é necessário. O resultado é uma rica rede de relações e de cooperação que também forma uma espécie de barreira entre o indivíduo e as autoridades civis, equilibrando o poder do estado e protegendo a liberdade e a independência do indivíduo. A subsidiariedade é, portanto, formalmente contrária ao totalitarismo. Não é surpreendente que o Papa Pio XI tivesse introduzido o termo em Quadragesimo anno (79-80), que foi escrito no contexto da ascensão do fascismo e do comunismo.
(Nota de tradução: Na medida em que a tradução portuguesa desta encíclica não contém a numeração de parágrafos, todos os números indicados de Quadragesimo anno remetem para a versão em língua inglesa.)
[4] Bens finais são os objetivos, os fins para os quais a associação existe e constituem a base da coordenação das atividades dos membros. Bens instrumentais são as condições que devem existir para que a associação possa prosseguir eficazmente os seus objetivos.
[5] Papa S. João XXIII, Mater et magistra (65). Esta definição é repetida em Pacem in terris (58) e foi retomada pelo Concílio Vaticano II em Gaudium et spes (74).
[6] Ver, por exemplo, Papa S. João Paulo II, Centesimus annus (11): “Se Leão XIII recorre ao Estado para dar o justo remédio à condição dos pobres, é porque reconhece oportunamente que o Estado tem o dever de promover o bem comum, e de procurar que os diversos âmbitos da vida social, sem excluir o económico, contribuam para realizar aquele, embora no respeito da legítima autonomia de cada um deles. Isto, contudo, não deve fazer pensar que, para o Papa Leão XIII, toda a solução da questão social se deverá esperar do Estado. Pelo contrário, ele insiste várias vezes sobre os necessários limites à intervenção do Estado e sobre o seu carácter instrumental, já que o indivíduo, a família e a sociedade lhe são anteriores, e ele existe para tutelar os direitos de um e de outras, e não para os sufocar.” Ver também Papa Leão XIII, Rerum novarum (15-16).
[7] Papa S. Paulo VI, Populorum progressio, (14).
[8] Papa S. João Paulo II, Centesimus annus (13).
[9] Papa S. João Paulo II, Centesimus annus (13).
[10] É provável que se possa argumentar que a maioria, talvez todas, das funções seguintes poderiam ser delegadas em atores não governamentais, ficando o governo estritamente limitado à supervisão. Por exemplo, árbitros contratados poderiam substituir o poder judicial, mercenários substituiriam o exército, a função de tributação seria contratada a empresas privadas, e assim por diante. Talvez seja possível, mas desconheço qualquer sociedade na história que tenha feito algo assim com sucesso, e algumas descobriram que a externalização de funções importantes acabou por se revelar desastrosa.
[11] Ver Santo Agostinho, A Cidade de Deus, em particular o Livro XIX.
[12] Ulpiano († AD 223): “Iustitia est constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi.” Digest 1.1.10.
[13] Embora várias injustiças, muitas das quais não é possível atribuir a indivíduos específicos, possam agravar os danos causados por acontecimentos fortuitos.
[14] Ver Pontifical Council for Justice and Peace (2005, 201), daqui em diante referido como Compendium.
[15] Temos de reconhecer que, por vezes, talvez muitas vezes, pode verificar-se uma deficiente distribuição de um recurso devido a injustiças reais. Em tais casos, é inteiramente apropriado que o governo intervenha para reivindicar os direitos das vítimas, mas isso seria um caso de fazer cumprir obrigações de justiça comutativa e não de justiça distributiva.
[16] Ver o Compendium (353), quando refere a intervenção governamental para corrigir situações em que o funcionamento normal do mercado “não é capaz de garantir uma distribuição equitativa de alguns bens e serviços essenciais ao crescimento humano dos cidadãos”. Isto pode ser uma questão de justiça distributiva propriamente dita (embora não seja uma solução para a injustiça), como um serviço para o bem comum pelo qual o governo distribui benefícios aos necessitados a partir do que se tornou propriedade comum através da tributação legal. O ponto-chave é o seguinte: é a necessidade urgente de pessoas específicas que é abordada, e não o mero facto da desigualdade. O que é negligenciado aqui, embora não propositadamente, é que as atividades privadas de caridade também complementam o que o mercado pode fazer e, em muitos aspetos, podem ser superiores à intervenção governamental, que deve ser considerada um último recurso.
[17] Neste ponto, a tradição clássica torna-se inconsistente, quer conceptualmente, quer em termos de vocabulário. Ver Kennedy (2019, 106-115) e Calvez e Perrin (2019, 116-150).
[18] Importa notar que o Papa Pio XI, que usou pela primeira vez o termo “justiça social” numa encíclica papal, associava-o frequentemente à “caridade social”, de modo que justiça e caridade se tornaram as duas virtudes essenciais para curar os problemas da sociedade. Ver Quadragesimo anno (88, 126) e Divini redemptoris (51-54). Ver também a encíclica do Papa Bento XVI, Deus caritas est (28).
[19] Ver Caritas in veritate (6).
[20] O exemplo mais proeminente desta discussão é Crowe (1944, 84).
[21] Adam Smith (1776), Livro V, Capítulo II, Parte II.
[22] Ver Papa Pio XII, “On Public Finance” (Address to delegates at the Congress of the International Institute of Public Finance, 2 October 1948), in The Catholic Mind (March 1949), pp 189-190; e “On Taxes” (Address to the International Association for Financial and Fiscal Law, 3 October 1956), in The Pope Speaks (Summer 1957), pp 77-80.
[23] Ver Catholic Church (1994, 1913-1915).
[24] Vemos isto, por exemplo, na retórica dos candidatos a cargos públicos que prometem programas que têm de ser financiados com impostos mais elevados, mas também prometem que os impostos só aumentarão para os ricos. Isto contribui para a desconfiança dos eleitores.
[25] As quatro categorias serão analisadas ao longo das próximas páginas, para lá da presente secção. (N.T.)
[26] No Reino Unido, regista-se uma tendência semelhante. O 1% mais rico dos contribuintes do imposto sobre o rendimento paga 29% de todo o imposto sobre o rendimento e o 5% mais rico paga cerca de 50% de todo o imposto sobre o rendimento. (N.E.)
[27] É, de facto, no âmbito da justiça legal que encontramos uma resposta à afirmação de que alguns membros da sociedade não pagam a sua “quota-parte” de impostos. Contudo, embora as pessoas tenham o dever de obedecer a leis justas, incluindo a leis fiscais, não têm normalmente a obrigação de ir além do texto da lei para cumprir o que supõem (mas, muitas vezes, não podem saber) ser o espírito da lei. Aqueles que se opõem a comportamentos de evasão fiscal devem concentrar a sua insatisfação, em primeiro lugar, nos legisladores que elaboraram mal o código fiscal ou falharam em coordenar os códigos de uma jurisdição com os de outra.
[28] Em 2019, a dotação da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, foi estimada em cerca de 6.9 mil milhões de libras (cerca de 8.4 mil milhões de dólares) e a da Universidade de Oxford em cerca de 6.1 mil milhões de libras (cerca de 7.4 mil milhões de dólares). Em comparação, a dotação da Universidade de Harvard foi estimada em cerca de 41 mil milhões de dólares (32 mil milhões de libras). A Universidade de Notre Dame, a universidade Católica mais rica do mundo, teve uma dotação de cerca de 12 mil milhões de dólares (9,5 mil milhões de libras), superior à das cinco universidades Católicas americanas mais ricas seguintes, em conjunto.
[29] Para exemplos modernos de defesas papais da propriedade privada, ver, por exemplo, Rerum novarum (4-5), Quadragesimo anno (44-46), Mater et magistra (19) e Pacem in terris (21), e Populorum progressio (22).
[30] Sollicitudo rei socialis (42): “Sobre a propriedade, de facto, grava «uma hipoteca social», quer dizer, nela é reconhecida, como qualidade intrínseca, uma função social, fundada e justificada precisamente pelo princípio da destinação universal dos bens.” Os seus predecessores exprimiram opiniões semelhantes: Quadragesimo anno (47-49), Mater et magistra (43) e Pacem in terris (22), e Populorum progressio (22-23). O mesmo ponto de vista foi expresso pelo Concílio Vaticano II em Gaudium et spes (69-71).
[31] O Papa Pio XI foi explícito a este respeito quando, em plena Depressão, escreveu que o investimento de riqueza “supérflua” de modo a criar emprego e bens úteis seria um excelente uso dessa riqueza. Ver Quadragesimo anno (50-51).
[32] Este ponto foi fortemente defendido em Rerum novarum, Quadragesimo anno e Centesimus annus. É igualmente importante que o estado não prejudique essas instituições, reduzindo a sua eficácia e aumentando os encargos para o estado.
[33] Maritain (1951).
[34] Para outro relato deste importante evento, com destaque para a participação de Eleanor Roosevelt, ver Glendon (2001).