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Unidade de curso online 10

Dívida pública: um tema negligenciado na Doutrina Social Católica

Philip Booth, Kaetana Numa e Stephen Nakrosis SOBRE OS AUTORES

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Introdução

Nas últimas décadas, um número significativo de países desenvolvidos acumulou níveis elevados de dívida pública. Os países sempre contraíram empréstimos para combater guerras ou financiar despesas excessivas. Contudo, o desenvolvimento dos mercados e de instrumentos de dívida modernos, juntamente com o pensamento económico do pós-guerra, alterou a natureza dos empréstimos e do endividamento dos estados.

A contração de empréstimos públicos implica a transferência para as gerações futuras do custo da provisão estatal de bens, serviços e prestações sociais. Poderá haver situações em que tal se justifique. Contudo, quer isso aconteça ou não, é importante que o pensamento social Católico e a Doutrina social Católica se envolvam nesta questão. Ao longo dos séculos, problemas como a inflação têm sido discutidos por aqueles que exploram o pensamento social católico. E, nos últimos anos, a Igreja Católica tem-se envolvido muito na questão da dívida pública nos países menos desenvolvidos. No entanto, tem havido relativamente pouca discussão sobre empréstimos e endividamento público nos países desenvolvidos. E isto apesar de ter havido ocasiões em que a dimensão da dívida prejudicou gravemente a responsabilidade democrática e a capacidade dos governos para desempenharem as funções fundamentais que lhes são exigidas pela Doutrina Social Católica.

Este capítulo descreve a evolução da dívida pública e algumas questões-chave que podem ser consideradas no desenvolvimento do pensamento social Católico e da Doutrina Social Católica sobre o assunto.

A evolução recente da dívida pública

A atenção pública à dívida dos estados é frequentemente despertada durante períodos económicos difíceis. Foi o que aconteceu no início da década de 1980, quando os países latino-americanos não conseguiram pagar o serviço da dívida e ficaram à beira do incumprimento. Em 2009, a crise europeia das dívidas soberanas ameaçou o futuro da zona euro, um episódio do qual ainda não recuperou totalmente. A dívida pública também foi muito debatida durante a crise da Covid-19 uma vez que se registaram despesas públicas sem precedentes, com licenças e apoios às empresas, o que levou muitos a questionarem-se sobre a sustentabilidade de novos aumentos da dívida pública.

No entanto, durante os melhores períodos económicos, os problemas com a dívida pública não desaparecem. Entre as crises, muitos países não têm conseguido reduzir a dívida, de modo que cada nova crise a faz crescer para níveis mais elevados. Além disso, aquilo que se pode designar como “dívida implícita”, que se traduz na forma de futuras pensões e obrigações com cuidados de saúde, acumula-se independentemente das circunstâncias económicas. Certos países também passam por fases de aumento dramático da dívida, mas isso não chega necessariamente às manchetes, a não ser que seja suficientemente generalizado ou suficientemente grave para que haja uma crise. Desta forma, como de outras formas que se tornarão claras neste capítulo, existem semelhanças com a crise ambiental.

A Tabela 1 apresenta dados históricos sobre a dívida pública em cinco países: Reino Unido, Estados Unidos, Japão, Grécia e Brasil. Como seria de esperar, a dívida tende a aumentar em tempo de guerra. E, de facto, a história da dívida nacional do Reino Unido entre 1700 e 2019 pode, mais ou menos, ser explicada por três guerras e uma crise financeira: a dívida pública aumentou drasticamente após as guerras napoleónicas, a primeira e a segunda guerras mundiais e a crise financeira de 2008. Em tempo de paz, os níveis de dívida pública tenderam a diminuir, apesar de isso não ter acontecido após a crise financeira. Contudo, nos últimos anos e em vários países, a dívida aumentou ou não foi reduzida em tempo de paz.

Tabela 1: Dívida pública em percentagem do PIB a preços de mercado entre 1800 e 2025 (em %)

1800182018401860188019001913192019391950197019902000201020202025*
Reino Unido176.8260.0154.7115.565.432.427.9137.8149.7216.973.228.837.075.7108.0117.0
Estados Unidos18.113.90.21.417.56.63.327.944.087.535.762.053.094.7131.2136.9
Japão34.021.553.625.671.214.012.067.0143.8215.8266.2264.0
Grécia218.164.777.823.6***24.773.2104.9146.3205.2165.9
Brasil99.054.937.736.2**30.810.665.768.563.0101.4104.4

* Projeção.
** Informação para 1923.
*** Informação para 1952.

Fonte: IMF Data Mapper: Historical Public Debt Database for 1800–2010; IMF Data Mapper: World Economic Outlook, for 2020–2025.

Ao considerar as flutuações da dívida nacional, devemos também ter em conta os incumprimentos e a inflação. Estas são formas de reduzir a dívida pública sem a pagar “honestamente”: assim, se a dívida baixar por estas razões é, de facto, problemático. O incumprimento significa que os países não paguem as obrigações exigidas pelos contratos de dívida; a inflação leva a que os países paguem a dívida com dinheiro desvalorizado. No Reino Unido, por exemplo, o nível de preços duplicou entre 1974 e 1979. Assim, em muitos aspetos, a descida do rácio dívida/rendimento nacional neste período foi uma ilusão: os governos estavam a desvalorizar a sua dívida usando o mecanismo da inflação e pagando aos detentores de obrigações do estado com dinheiro que tinha um valor inferior. O Japão entrou em incumprimento da sua dívida após a segunda guerra mundial e houve outros incumprimentos entre os países na tabela.

Desde 2009, o Japão é a primeira economia moderna desenvolvida a manter um nível de dívida superior a 200% do PIB em tempo de paz. Entretanto, a situação da dívida grega é provavelmente sinónimo das crises da dívida na América do Sul e Central que nos são familiares. Embora a Grécia tenha conseguido manter a dívida abaixo dos 30% do PIB durante a maior parte do período pós-guerra até à década de 1980, a dívida aumentou rapidamente, oscilando em torno da marca dos 100% a partir de 1993, aumentando após a crise financeira e ultrapassando o limiar dos 200%. A situação só ficou estabilizada em resultado de resgates, austeridade severa, reestruturação e intervenção de agências económicas externas.

Na década que se seguiu à crise financeira, a dívida pública não regressou aos níveis anteriores à crise: de facto, em muitos países, aumentou ainda mais, mesmo depois de o pior da crise ter passado. Entre 2007 e 2019, a dívida pública em percentagem do rendimento nacional duplicou no Reino Unido (de 42% para 85% (IMF, 2020b)), com tendências semelhantes nos Estados Unidos (passando de 65% para 109%), Grécia (de 103% para 181%), Japão (de 175% para 238%) e Brasil (de 64% para 90%). Mesmo quando consideramos o período entre 2014 e 2019, após os resgates dos bancos no auge da crise financeira, a dívida pública apenas diminuiu na Alemanha.

Ainda que a situação atual e o historial da dívida pública possam ser motivo de preocupação, devemos também considerar a dinâmica da dívida pública no futuro. No Reino Unido, o Office for Budget Responsibility (OBR) projeta a dívida pública para 50 anos no seu relatório anual sobre sustentabilidade fiscal. Assumindo que as políticas fiscais e de despesa se mantêm inalteradas (ou seja, que continuaremos a atualizar as pensões, os escalões de imposto e as despesas de saúde de acordo com as políticas atuais), essas projeções demonstram o que pode acontecer à dívida nacional à medida que a demografia se altera e temos menos contribuintes e mais pessoas idosas a receber pensões e cuidados de saúde, como na situação que temos hoje. Mesmo antes da pandemia, previa-se que a dívida pública no Reino Unido atingisse 283% do PIB até 2067 (Office for Budget Responsibility, 2018). Quando o Relatório de Sustentabilidade Fiscal de 2020 foi produzido, e a pandemia estava apenas a começar, aquele número foi revisto para cerca de 400% do rendimento nacional (Office for Budget Responsibility, 2020). Este número flutua, mas as projeções atuais são semelhantes. Para manter a dívida sob controlo, será necessário proceder a enormes cortes na despesa pública ou a aumentos de impostos ao longo da próxima geração. De facto, as projeções do OBR sugerem que, mesmo com aumentos da tributação para níveis muito superiores aos registados na história britânica moderna ou em outros países desenvolvidos, teria de haver cortes nos serviços públicos ou no pagamento de transferências, incluindo àqueles a quem foram feitas promessas de pensões ou de cuidados de saúde. Esta evolução das finanças públicas é uma consequência da criação de sistemas de segurança social em que as pensões e os custos com cuidados de saúde são financiados pelos impostos da geração ativa seguinte. As implicações desta situação serão discutidas em secções posteriores.

Num determinado ano, o montante total da dívida pública aumenta se houver um défice orçamental, isto é, se as despesas públicas anuais excederem as receitas anuais. A Itália, por exemplo, tem registado défices todos os anos desde a segunda guerra mundial. Há várias razões para a existência de défices (discutiremos este aspeto mais adiante), e é frequentemente defendido que os défices orçamentais a curto prazo podem ser razoáveis e justificados se forem seguidos de períodos de excedente orçamental. Contudo, como se pode ver na Figura 1, ao longo dos últimos 25 anos, a maioria dos países utilizados como exemplos neste capítulo registou principalmente défices orçamentais, com apenas períodos fugazes de excedente orçamental (1999-2001 no Reino Unido; 2000 nos Estados Unidos; e 2016-2019 na Grécia).

General government surplus as a share of GDP (%) (negative figure is a deficit)

Figura 1: Excedente orçamental em percentagem do PIB (%) (um valor negativo representa um défice)
Fonte: OECD (2021) General government debt

A dívida pública em percentagem do rendimento nacional é regularmente entendida como uma melhor medida do seu peso. Este valor aumenta se, num dado ano, o défice em percentagem do rendimento nacional for superior ao crescimento do rendimento nacional. Trata-se de uma dificuldade pouco exigente, mas o aumento do endividamento em proporção do rendimento nacional visível na Tabela 1 revela que a maioria dos países não a tem conseguido ultrapassar durante períodos sustentados de tempo.

Quando a dívida pública se acumula, gera-se um verdadeiro ónus: não se trata apenas de uma transação em papel. Em primeiro lugar, há juros que têm de ser pagos. Em segundo lugar, os governos têm de reduzir despesas ou aumentar impostos, se tudo o resto se mantiver igual, para que o peso da dívida possa ser reduzido para níveis mais baixos. Atualmente, os juros da dívida pública no Reino Unido correspondem a cerca de nove vezes a despesa pública com ajuda externa e cerca de duas vezes a despesa com a defesa.

É com frequência sugerido que a dívida pública nos países desenvolvidos não é um fardo porque “a devemos a nós próprios”. Esta afirmação não é correta. Em primeiro lugar, uma parte substancial (cerca de um terço no Reino Unido) é devida a detentores estrangeiros de dívida pública. Em segundo lugar, mesmo que não seja esse o caso, não a devemos a nós próprios: os futuros contribuintes em geral devem-na a pessoas concretas, como as que esperam receber uma pensão de um fundo de pensões que comprou obrigações do estado. Trata-se de um ónus real para os contribuintes futuros e, se os governos entrarem em incumprimento ou pagarem a dívida com dinheiro sem valor resultante da inflação, esses pensionistas no futuro não receberão as pensões que esperam.

Como já foi referido, a Igreja Católica começou por se interessar pela dívida pública no que diz respeito aos países mais pobres que se endividaram junto dos países mais ricos. Também tem havido alguma discussão sobre a dívida pública nos países de rendimento médio. A dívida nacional do México correspondia a 48% do rendimento nacional quando o país ameaçou não pagar a sua dívida em 1982. Este facto chamou a atenção da Igreja Católica e de numerosas organizações não governamentais para o agravamento da situação da dívida nos países da América Latina e de África. Em 1986, quando o Pontifício Conselho “Justiça e Paz” publicou um documento intitulado “At the Service of the Human Community: An Ethical Approach to the International Debt Question”, a dívida do México tinha aumentado para 78% do rendimento nacional. Este nível é muito inferior aos níveis de dívida de muitos dos países mais ricos hoje, mas provocou uma crise. Embora os níveis de endividamento nos países mais ricos não tenham conduzido ao ponto de o incumprimento ser considerado iminente, muitos dos problemas que discutiremos a seguir, como o de justiça intergeracional, são ainda mais graves no caso dos países desenvolvidos de hoje. Um país não tem de estar perante uma catástrofe iminente para que a sua dívida seja eticamente problemática.

Pensões e custos com cuidados de saúde futuros

A dívida pública oficial não é a única obrigação que um governo tem. Uma característica dos países ocidentais no pós-guerra é o facto de terem criado sistemas de segurança social em que os indivíduos acumulam direitos a pensões e cuidados de saúde, mas, ao contrário do que acontece no setor privado, não é reservado qualquer dinheiro para fazer face a esses custos. Também ao contrário do setor privado, os governos não têm de prestar contas sobre essas obrigações. Estes sistemas podem permanecer estáveis se a estrutura da população não se alterar. Contudo, se o número de jovens diminuir em relação ao número de pessoas mais velhas, podem tornar-se um encargo grave. Alguns países (por exemplo, o Japão, a Alemanha, a Itália e a maioria dos países da Europa Central e do Leste) estão a enfrentar um rápido envelhecimento da população. Nestas circunstâncias, as obrigações aumentam, mas os meios para as financiar esgotam-se.

Estas obrigações em matéria de pensões e cuidados de saúde são por vezes designadas como “dívida pública implícita”, uma vez que permanecem ocultas do olhar e do escrutínio público. O prolongamento da esperança de vida e o aumento do número de reformados são, claro, uma evolução positiva. Contudo, coloca um problema para as finanças públicas por não ter sido reservado qualquer financiamento para pagar os compromissos futuros relacionados com pensões e cuidados de saúde. A natureza desta forma de dívida pode ser facilmente ilustrada pelas decisões políticas tomadas em vários países no início da década de 2000. Em países como a Argentina, a Polónia e a Hungria, os indivíduos viram os seus investimentos em fundos de pensões serem-lhes confiscados pelo governo, que utilizou esses fundos para pagar a dívida pública, fazendo com que a dívida parecesse menor. O governo prometeu então pensões àqueles a quem foram retirados os fundos para substituir as pensões investidas a título privado. Na maioria dos contextos do setor privado, isto seria chamado “passivo extrapatrimonial” e teria de ser contabilizado. Mas, naqueles casos, isso não aconteceu.

O montante de dívida implícita não é simples de quantificar, até porque depende de pressupostos relativos a futuras decisões políticas. Uma estimativa colocou a dívida total dos Estados Unidos em 500% do rendimento nacional em 2014 – cerca de cinco vezes o nível da dívida explícita (Tanner, 2015). As estimativas variam de país para país e do método utilizado para calcular as obrigações. No entanto, esta estimativa está bastante próxima do consenso numa série de países.[1]

Pode ser defendido que os governos não têm de honrar esses compromissos e que a dívida implícita poderia ser reduzida através de uma simples alteração dos direitos. Contudo, isto seria como uma outra forma de incumprimento da dívida, e violaria a justiça distributiva dadas as expectativas razoáveis daqueles que contribuíram para os regimes de pensões durante a sua vida ativa.

Vale a pena mencionar que o antigo primeiro-ministro Católico da Irlanda, John Bruton, levantou explicitamente a questão da dívida pública numa palestra que deu em abril de 2019. Ele observou que “[d]emasiadas vezes a Igreja opta pelo caminho mais fácil e deixa esta questão moral particular para os políticos… A Igreja deveria aplicar à política fiscal o mesmo sentido de justiça intergeracional que aplica à política ambiental”. Bruton relacionou especificamente esta questão com “o acumular de obrigações de pensões impagáveis”.[2]

As causas e o financiamento da dívida pública

Ainda não nos referimos às causas da dívida pública, exceto de passagem. Contudo, à medida que avançamos para a análise das implicações morais, temos de considerar por que razão os governos acumulam dívida. Isto ajuda a determinar a sua importância moral. Estas questões da gestão da dívida pública são discutidas em manuais de finanças públicas como o de Gruber (2019). As questões relacionadas com os incentivos das democracias para uma tendência natural de votar em governos que acumulam mais dívida são examinados por Wagner (2012). Os argumentos podem ser muito técnicos, mas os princípios básicos são os descritos a seguir.

Como já foi referido, a dívida é frequentemente acumulada em tempo de guerra. Uma guerra justa implicará, muito provavelmente, proteger o bem comum do país (ou de um país aliado) de ser gravemente destruído. Todos os recursos de um país podem ser mobilizados para combater a guerra e isto pode implicar a interrupção da atividade económica normal, sendo os custos suportados pelo governo. Além disso, a própria guerra, incluindo a ação do inimigo, pode impedir a atividade económica normal e causar muitos danos às infraestruturas.

Uma situação semelhante à de guerra pode ocorrer quando se verifica um acontecimento catastrófico de grandes proporções, como um desastre natural, uma crise financeira ou uma epidemia. Nessas situações, o governo pode contrair empréstimos para garantir que as pessoas mantenham um nível de vida adequado – foi o que aconteceu em muitos países durante a pandemia da Covid. As receitas fiscais do estado serão mais baixas e poderão existir custos diretos a suportar (testes no caso de pandemia, reconstrução após um terramoto ou resgate de bancos em caso de crise financeira). Como já foi referido, no Reino Unido, os picos da dívida pública estiveram estreitamente relacionados com o tempo de guerra, a crise financeira e o próximo pico coincidirá, muito provavelmente, com a pandemia.

Uma segunda razão para a acumulação de dívida pública é o facto de um governo poder simplesmente não estar disposto a aumentar os impostos para financiar as suas despesas. Em termos simples, os eleitores numa democracia podem exigir mais despesa pública do que aquela que pagam com os impostos. As implicações morais podem ser um pouco diferentes quando os governos contraem empréstimos para investir de forma a beneficiar as gerações futuras – por exemplo, investindo em infraestruturas de transporte. É de esperar que estes investimentos aumentem o crescimento económico nos anos futuros e, consequentemente, as receitas fiscais.

Uma outra razão para contrair empréstimos, pelo menos a curto prazo, acontece porque as economias podem passar por períodos de crescimento abaixo e acima da média. Quando o crescimento é abaixo da média, o desemprego pode aumentar, os lucros diminuem e as empresas vão à falência. Quando isto acontece, as receitas fiscais tendem a diminuir e as despesas públicas com prestações sociais poderão aumentar. Em consequência, o governo pode apresentar um défice. Quando o crescimento é acima da média, pode acontecer o contrário: as receitas fiscais podem aumentar, as despesas públicas podem diminuir e pode gerar-se um excedente. Tal como acontece num agregado familiar com rendimentos flutuantes, não faz sentido que um governo tenha um orçamento equilibrado todos os anos quando as receitas e as despesas são variáveis. Em média, os défices resultantes deste efeito devem cancelar os excedentes.

Ainda relacionado com este aspeto, os governos geram frequentemente défices para tentar “estimular” a economia quando a produção ou o emprego estão abaixo dos níveis normais. Esta política é tipicamente descrita como “keynesiana” e a questão de saber se tem algum efeito benéfico é amplamente discutida. Em teoria, os governos registariam excedentes para “arrefecer” a economia quando a produção ou o emprego estão acima dos níveis normais.

Este capítulo aborda a dívida pública nos países desenvolvidos. Nestes países, os governos tendem a financiar a sua dívida com a venda de obrigações. Contudo, as despesas públicas também podem ser pagas através da criação de moeda ou, mais frequentemente, em especial depois da crise financeira, através da impressão de dinheiro pelo banco central por forma a comprar as obrigações emitidas pelos governos. Isto pode conduzir a inflação. De facto, a impressão de dinheiro pelos governos para financiar as despesas tem sido uma causa comum de hiperinflação em países como o Zimbabué e a Venezuela.

É fácil para os governos, com o apoio do eleitorado, ter uma tendência natural para acumular dívidas em vez de excedentes. Assim, os governos podem registar défices quando o desemprego é elevado, mas não os reduzir quando a economia regressa ao normal. Pode ser mais fácil para os governos gastar dinheiro em projetos de infraestruturas, mesmo que o retorno seja medíocre, do que restringir as despesas, e assim por diante. Gastar sem tributar permite que uma parte do eleitorado seja beneficiada, pelo menos no curto prazo, com os custos a serem adiados para uma data futura. O mesmo se aplica à acumulação de dívidas implícitas em matéria de pensões e cuidados de saúde. É mais fácil para os governos prometer aos trabalhadores atuais que receberão pensões e cuidados de saúde no futuro, e não reservar o capital para financiar esses pagamentos, do que criar um fundo de capital. As gerações futuras suportarão, então, os custos.

As razões pelas quais os governos acumulam dívida são, de facto, importantes no que diz respeito aos aspetos morais, especialmente em relação à justiça distributiva. Passemos agora para a discussão dessas questões morais, que são legitimamente do domínio do pensamento social Católico e da Doutrina Social Católica.

Justiça intergeracional e dívida pública

Embora a dívida pública seja amplamente discutida em economia e, em menor grau, por outras ciências sociais, com questões de equidade e justiça a serem levantadas, não foi discutida nos documentos da Doutrina Social Católica ou no discurso erudito sobre o pensamento social católico.

A Humanidade foi colocada por Deus no pináculo da criação e recebeu a responsabilidade de agir como administradores da terra. Como diz no Génesis, Deus disse a Adão e Eva: “Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a.” (Genesis 1:28). O princípio segundo o qual os bens deste mundo existem para serem usufruídos por todas as pessoas é conhecido na doutrina Católica como o “destino universal dos bens”. É impossível que todas as pessoas usufruam de todos os bens do mundo. Prudentemente, a Igreja, e os governos que seguem a doutrina da Igreja mesmo que apenas implicitamente, empregam certos princípios de justiça distributiva para garantir que os bens deste mundo sejam distribuídos de forma pacífica e justa. Estes princípios implicam liberdade contratual no mercado de trabalho, propriedade privada, intervenção de organizações da sociedade civil quando a liberdade contratual produz resultados insatisfatórios e redistribuição de recursos pelos mais necessitados, incluindo pelo estado. Estes são processos em que todas as instituições da sociedade, incluindo a família, estão envolvidas.

O endividamento público significa a tomada de decisões em que contribuintes de uma geração consumem hoje à custa dos contribuintes futuros.[3] A questão que se coloca é a de saber se isto é compatível com princípios razoáveis de justiça distributiva. Nestes assuntos, o exercício da prudência é importante. Assim, a resposta não será simplesmente “sim” ou “não”: pessoas razoáveis discordarão. Contudo, em princípio, não podemos ignorar as gerações futuras quando se trata de justiça distributiva. O Papa Paulo VI escreveu:

Herdeiros das gerações passadas e beneficiários do trabalho dos nossos contemporâneos, temos obrigações para com todos, e não podemos desinteressar-nos dos que virão depois de nós aumentar o círculo da família humana. A solidariedade universal é para nós não só um fato e um beneficio, mas também um dever. (Populorum progressio, 17)

E o Papa Bento XVI avisou que estamos “a viver na mentira” quando vivemos à custa das gerações futuras (Seewald, 2010, 47-48): o Papa Bento XVI estava a responder a uma pergunta de Seewald sobre dívida pública quando fez este comentário. No pensamento social Católico, a nossa responsabilidade pelo futuro foi reconhecida em termos de obrigações ambientais. Somos compelidos a reconhecer “como gravíssimo o dever de entregar a terra às novas gerações num estado tal que também elas possam dignamente habitá-la e continuar a cultivá-la”. (Caritas in veritate, 50) Mas pouco se tem dito sobre dívida pública.

Talvez a primeira ocasião em que a justiça intergeracional foi considerada de forma sistemática na Doutrina Social Católica tenha sido na Laudato si, a encíclica do Papa Francisco sobre o ambiente. Uma secção desta encíclica intitula-se “A Justiça intergeracional” e apela à solidariedade entre gerações. A solidariedade pode ser definida como “a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum” (Sollicitudo rei socialis, 38, itálico no original). O Papa Francisco escreveu: “Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão a crescer? Esta pergunta não toca apenas o meio ambiente de maneira isolada, porque não se pode pôr a questão de forma fragmentária.” (Laudato si, 160) Ele alertou ainda para uma cultura de gratificação imediata e em que os pais consomem demasiado, tornando mais difícil para os seus filhos adquirirem uma casa ou os recursos necessários para constituir família.

Os mesmos princípios aplicam-se à dívida pública. Uma sociedade que se sente confortável acumulando dívida pública, porque não está disposta a obter, através de impostos sobre a geração atual, os recursos necessários para financiar as despesas públicas de consumo, está a impor um fardo injusto às gerações futuras de contribuintes e a viver de forma inapropriada. Se a dívida se tornar demasiado onerosa, os governos poderão rejeitar o pagamento da dívida: mas também isto seria uma injustiça para aqueles que, de boa-fé, emprestaram dinheiro ao estado. Poder-se-ia pensar que, numa situação destas, teríamos pouca simpatia pelos credores. Mas devemos lembrar-nos que não podemos generalizar a sua situação financeira. Eles podem incluir beneficiários de fundos de pensões que dependem desses fundos para o seu rendimento na reforma ou outros grupos de pessoas que não estão necessariamente bem na vida, quer no seu país quer no estrangeiro.[4]

Se o governo tentar reduzir o peso da dívida através da inflação, isto criará outros problemas (ver abaixo), mas também levará a uma redistribuição arbitrária da riqueza de pessoas com certos tipos de propriedade (as que têm rendimentos fixos, muitas vezes pensionistas e detentores de dívida pública) para o conjunto mais vasto de contribuintes e outros devedores na economia. Isto, por si só, é problemático na perspetiva de justiça distributiva.

Os princípios de justiça distributiva que são normalmente utilizados no pensamento Católico deveriam levar-nos à preocupação com o facto de uma geração consumir, sistematicamente, à custa da geração futura de contribuintes, com exceção de circunstâncias específicas que serão consideradas adiante. Gostaríamos de argumentar que esta conclusão também se deve aplicar às obrigações relativas às futuras pensões e aos custos com cuidados de saúde. Uma geração não deve atribuir a si própria direitos sem reservar os recursos necessários para providenciar os custos futuros desses direitos, como aconteceria num regime de segurança social do setor privado ou mutualista. Se o fizer, coloca a sociedade em risco de que mudanças económicas e demográficas futuras conduzam a uma situação em que poderão não existir recursos para financiar as obrigações. Este facto, por sua vez, tem o potencial de criar tensões e conflitos entre gerações, quando os princípios adequados de justiça deveriam eliminar instâncias de tensão e conflito. Tais conflitos também prejudicam o bem comum e, por conseguinte, o princípio de justiça social é posto em causa, bem como o princípio de justiça distributiva.[5]

Isto não significa, evidentemente, que não devemos ter sistemas de cuidados de saúde e provisão de pensões na velhice. Mas defendemos que tais prestações devem ser, em larga medida, financiadas no momento em que são feitas as promessas. Isto pode acontecer no contexto de acordos mutualistas entre os trabalhadores, por vezes organizados por sindicados, de acordos comerciais privados ou de acordos governamentais[6] ou pode traduzir-se em acordos híbridos que misturem estas abordagens.

Contudo, pode haver situações em que seja prudente e justo para um estado contrair dívidas. Uma sociedade que contrai dívida para criar condições que conduzam à prosperidade económica, quer para a geração atual quer para gerações futuras, pode esperar, com razão, que as gerações futuras contribuam para o custo da criação de tais condições. Pode ser o caso, por exemplo, quando o governo financia investimentos em infraestruturas, embora seja necessária prudência para garantir que essas despesas têm os benefícios esperados e não se limitam a promover os interesses de determinados grupos da sociedade. Uma outra hipótese pode resultar da ocorrência de uma catástrofe no país, como a pandemia atual, sendo prudente que o governo suporte os custos económicos tanto dos tratamentos, como das medidas que possam ser tomadas para proibir a atividade económica, e é justo que os custos sejam distribuídos pelas gerações futuras – embora também possa ser defendido que os governos devem acumular recursos para lidar com acontecimentos como estes em vez de contrair empréstimos quando eles ocorrem. Por fim, também no caso de o bem comum de toda a comunidade ser ameaçado de destruição em tempo de guerra, seria justo contrair empréstimos para defender o país.  Em primeiro lugar, as gerações futuras beneficiarão destas ações se se tratar de uma guerra justa. Em segundo lugar, quando essa ação é necessária para a sobrevivência da sociedade, e tal como acontece com os princípios normais do direito de propriedade que podem ser anulados em benefício de uma pessoa carente,[7] a Doutrina Social Católica aceitaria certamente que fizéssemos tudo o que pudéssemos para proteger o bem comum da sociedade em tempos de guerra, mesmo que as gerações futuras suportassem parte dos custos.

Este capítulo limita-se a arranhar a superfície do assunto e talvez apresentar algumas bases para aqueles que trabalham nesta área. Contudo, gostaríamos de argumentar que, aplicando os princípios de justiça distributiva, há fortes argumentos para que os governos não acumulem sistematicamente dívidas, a menos que as circunstâncias sejam excecionais ou que as futuras gerações beneficiem claramente delas. Para além de ser uma injustiça, as restantes secções consideram se esse endividamento pode, de facto, impedir os governos de assumirem as funções que a Doutrina Social Católica lhes exige.

O papel do governo na Doutrina Social Católica

O Catecismo da Igreja Católica afirma (Catholic Church, 1994): “Toda a comunidade humana tem necessidade de uma autoridade que a governe” e o papel da autoridade é “assegurar, quanto possível, o bem comum da sociedade” (1898). O bem comum, por sua vez, é definido em Gaudium et spes, um dos documentos do Concílio Vaticano II, como: “o conjunto das condições de vida social que permitem aos indivíduos, famílias e associações alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição”. (74)

Todas as organizações sociais têm a sua responsabilidade na promoção do bem comum. Não cabe ao estado exigir diretamente que as pessoas vivam uma vida de realização e perfeição. Em vez disso, ele deve criar as condições que permitam a todos desempenhar o seu papel na realização daquele objetivo. É neste contexto que a Doutrina Social Católica delineou as funções específicas do estado, incluindo a promoção da justiça, a garantia de paz interna e externa, a proteção dos direitos de propriedade, a garantia de estabilidade monetária e a regulação adequada da vida económica. O estado deve também atuar de acordo com o que se tornou conhecido como a opção preferencial pelos pobres, prestando atenção particular ao bem-estar dos menos favorecidos (ver, por exemplo, Rerum novarum, 37), uma vez que os mais ricos têm meios para olhar pelos seus próprios interesses. De acordo com Hirschfeld (2018, 27), o governo, no pensamento tomista, deve promover o cultivo da virtude – e, certamente, não deve impedi-lo.

A Igreja Católica tem apoiado a democracia como forma de escolher o governo (Centesimus annus, 46). Isto garante que o governo é responsabilizável perante o povo e pode ser substituído de forma pacífica. A democracia deve também ser um meio para garantir que a sociedade não é gerida por grupos de interesses particulares.

Coloca-se, portanto, a questão de saber se a acumulação de dívida pública prejudica estas funções cruciais do governo ou, de facto, o funcionamento da democracia. Em resposta a esta questão, pode dizer-se que há muitos exemplos históricos de como a dívida conduz a problemas graves num país ao ponto de impedir que os governos ou as democracias concretizem as suas funções legítimas. Os exemplos são suficientes para o demonstrar. O facto de nem todos os casos de endividamento excessivo conduzirem a resultados catastróficos não significa que devamos descartar o problema.

A dívida e o enfraquecimento da governação para o bem comum

A acumulação de dívida excessiva e a subsequente necessidade de pagar os juros e o capital dessa dívida levou, no passado, a que os governos se vissem limitados no desempenho das suas funções. Em muitos casos, a acumulação de dívida conduziu a ou exacerbou um colapso total do funcionamento do governo e da sociedade. Nos casos mais extremos, o problema do endividamento excessivo resultou no fim da soberania. Para algumas nações, a acumulação de dívida conduziu a uma perda do controlo sobre os bens e ativos nacionais.

Durante o século XIX, à medida que o comércio se começou a espalhar e novas nações independentes, em lugares como a América do Sul e África, procuraram usar dinheiro emprestado para o desenvolvimento interno, uma onda de crises de dívida e de incumprimento atingiu o mundo. Durante a década de 1860, o Egito contraiu grandes empréstimos para construir estradas e fábricas bem como para erigir edifícios públicos e privados no Cairo, imitando as capitais ocidentais, especialmente Paris. O país foi forçado a entrar em incumprimento em 1876, o que levou a que as suas finanças públicas fossem colocadas sob o controlo de um conselho franco-britânico de administração da dívida. O Reino Unido invadiu então o Egito em 1887, aparentemente para forçar o pagamento da dívida externa. Contudo, a ação do Reino Unido pode também ter sido motivada pelo controlo do Canal do Suez, com a questão da dívida a servir como causus belli da ação agressiva contra o Egito.

Durante o mesmo período, muitas nações, incluindo a Tunísia, a Sérvia e a Grécia, foram forçadas a aceitar que conselhos de administração da dívida externa assumissem o controlo dos fluxos de receitas do governo para garantir o pagamento das suas obrigações. O Haiti, a Nicarágua e a República Dominicana foram obrigados a aceitar a presença de tropas dos Estados Unidos no seu território nos primeiros anos do século XX, e permitiram que funcionários norte-americanos assumissem o controlo das alfândegas para que as receitas pudessem ser direcionadas para o pagamento da dívida externa.

A queda da dinastia Bourbon em França foi acelerada pelos problemas financeiros do regime. Nos últimos dias do reinado de Luís XVI, este viu-se forçado a convocar os Estados Gerais como esforço para convencer os legisladores a aumentar os impostos. Uma vez reunidos pela primeira vez em 150 anos, os Estados Gerais procuraram retirar mais poder ao rei, levando ao início da Revolução Francesa.

A dívida também tem sido usada por nações como meio de pressionar um devedor a prosseguir ou a cessar políticas nacionais que o credor desaprova. Um exemplo disso ocorreu durante a crise do Suez em 1956. Quando o General Gamal Abdel Nasser anunciou que o Egito iria nacionalizar o Canal do Suez, o Reino Unido e a França, na sequência da invasão israelita do Egito em outubro, enviaram tropas para ocupar a zona do Canal do Suez. O Presidente dos Estados Unidos, Dwight Eisenhower, receando que esta demonstração de força militar pudesse empurrar o Egito para uma relação mais próxima com a União Soviética, pressionou politica e economicamente as nações invasoras para retirarem as suas tropas do Egito. Os Estados Unidos estavam em posição de fazer tais exigências devido aos elevados montantes de dívida britânica e francesa que detinham e que tinham sido emitidos para pagar as despesas do tempo de guerra e a subsequente reconstrução. A crise do Suez de 1956 serve de exemplo de como uma nação credora pode pressionar as nações que estão em dívida.

Em casos mais extremos, uma nação que lida com um problema de endividamento excessivo pode encontrar-se numa situação tão difícil que perderá a sua independência e será integrada noutra nação. No final do século XVII uma situação deste género ocorreu na Escócia. Um projeto de colonização do istmo do Panamá, sob os auspícios da Darien Company, acabou por fracassar completamente. O plano levou a Escócia à falência e, pouco tempo depois, o país entrou em união política com a Inglaterra ao abrigo do Tratado de União de 1707. Enquanto as consequências financeiras do projeto Darien não tenham sido a única causa dessa união política (a Escócia estava também a sofrer de fome em sequência de uma série de más colheitas), o subsequente colapso da capacidade da Escócia para pagar as suas dívidas ou financiar as suas funções resultou na perda da independência da nação.

Da mesma forma, na década de 1930, a situação financeira da Terra Nova, na altura um país independente, levou a que a nação se tornasse parte do Canadá. Na década de 1920, a Terra Nova começou a envolver-se em despesas deficitárias e a contrair empréstimos no estrangeiro. Quando a economia mundial se contraiu após o colapso da bolsa de valores em 1929, a situação financeira da Terra Nova tornou-se periclitante. Em 1932, viu-se forçada a pedir um empréstimo ao Reino Unido e ao Canadá para poder pagar a sua dívida. O país perdeu a sua função pública, encerrou postos de correio e eliminou muitos programas de assistência social. O colapso da sua economia conduziu ao colapso do sistema político da Terra Nova. A nação acabou por abdicar da sua soberania e entregou o controlo do governo da ilha a uma comissão escolhida por Westminster, que lhe respondia politicamente. Após o fim da segunda guerra mundial, e ainda confrontada com uma grande dívida, a população da Terra Nova votou a favor de uma confederação com o Canadá.

A história mais recente da Argentina é especialmente interessante porque ilustra muitos dos pontos feitos nesta secção. Como país, entrou em incumprimento em nove ocasiões. No início da década de 1930, a Argentina era um dos países mais ricos do mundo. Durante o período peronista da década de 1950, embora as despesas do estado tenham aumentado drasticamente, tal não levou à acumulação de dívida pública, em parte devido a uma situação fiscal excecionalmente boa que se seguiu à segunda guerra mundial, mas também em parte devido à impressão de dinheiro para financiar a despesa do estado. Contudo, despesas públicas superiores às receitas acabaram por levar a inflação a subir para mais de 1000% em 1976. A partir dessa altura, um enorme excesso de despesas públicas em relação às receitas fiscais começou a ser financiado por dívida externa, que aumentou em cerca de 40% do rendimento nacional em 10 anos. Esta situação piorou e foi agravada por outras dificuldades macroeconómicas e a inflação voltou a subir para cerca de 1500% em meados da década de 1980. Uma inflação com estes níveis é profundamente prejudicial para o tecido económico e social e conduz a uma redistribuição arbitrária do rendimento e da riqueza, para além de encorajar a especulação financeira. Durante este período, o investimento privado e os rendimentos reais caíram. Nos vinte anos seguintes, verificou-se uma série de acontecimentos que podem ser associados à desestruturação económica e social: incumprimentos da dívida, níveis elevados de inflação, reduções na despesa pública com programas sociais, uma quase triplicação da pobreza extrema em 18 meses a partir de maio de 2001, motins e uma eleição geral em que 20% da população desperdiçou os seus votos. Além disso, quando o Fundo Monetário Internacional (FMI) e os credores passaram a ter uma palavra muito mais importante na tomada de decisões políticas e económicas, a autonomia política perdeu-se (e, por conseguinte, a responsabilização do governo perante a população). Quase todas as funções legítimas do governo foram seriamente prejudicadas.

A crise do euro de 2009 registou problemas semelhantes em muitos países do sul da Europa. Esta crise surgiu, em certa medida, do nada. Contudo, os já elevados níveis de dívida pública em países como a Itália e a Grécia levaram a que estes se tivessem revelado incapazes de lidar com as consequências de um choque que, se as políticas anteriores tivessem sido mais prudentes, teria causado muito menos dificuldades. Tanto a Itália como a Grécia entraram na crise do euro com uma dívida pública superior a 100% do rendimento nacional. Em Itália, durante a crise da dívida, foi nomeado um governo inteiramente composto de profissionais não eleitos. Na Grécia, a resposta à crise da dívida envolveu uma série de pacotes de apoio por parte de outros países e instituições. Estes pacotes têm um custo real para os credores e, por isso, são impostas condições que levam a que a responsabilização democrática seja, de facto, substituída por uma responsabilidade perante as instituições que representam os credores, como a União Europeia ou o FMI. A pobreza extrema na Grécia duplicou nos cinco anos que se seguiram à crise, atingindo alguns dos níveis mais elevados da União Europeia.

Um caso extremo de desestruturação social causada pela dívida pública é o da Alemanha no período entre guerras. É importante notar que esta dívida não resultou do facto de os contribuintes alemães não estarem dispostos a financiar as despesas públicas através de impostos: foi imposta ao país pelos aliados após a primeira guerra mundial. Ainda assim, o que nos interessa são os efeitos do endividamento, e não a causa. O efeito imediato de um tal nível de endividamento foi o incumprimento e, depois, a ocupação francesa e belga do vale do Ruhr. A subsequente impressão de dinheiro para pagar as dívidas e financiar as transferências para os afetados pela ocupação conduziu a hiperinflação, ampla pobreza e danos económicos e sociais.

Nos casos referidos, houve uma série de fatores em jogo e há desacordo quanto às causas últimas das várias crises que surgiram. Contudo, não há dúvida de que o crescimento da dívida pública tem sido um fator importante no enfraquecimento das funções centrais do governo delineadas na Doutrina Social Católica. A responsabilização do governo perante a população através dos mecanismos democráticos tem sido enfraquecida e, nos vários exemplos dados, assistimos a hiperinflação, enorme crescimento de pobreza, aumento de tensões sociais, golpes militares e motins. As funções básicas do governo na promoção do bem comum foram seriamente prejudicadas. Além disso, existem também preocupações importantes relacionadas com o papel do governo na promoção da justiça distributiva. Incumprimento, inflação e austeridade extrema conduzem a uma redistribuição arbitrária da riqueza e dos rendimentos entre os diferentes grupos da sociedade. Alguns desses grupos podem ser capazes de gerir a perda de rendimentos e riqueza; outros, com rendimentos fixos ou a receber pensões investidas em obrigações do estado, podem perder tudo o que possuem ou grande parte do seu rendimento. O mesmo pode acontecer aos mais pobres que dependem de assistência estatal. Todos os cidadãos podem ser confrontados com aumentos significativos de impostos e, por conseguinte, uma menor capacidade para desempenhar o seu papel na promoção do bem comum através de uma vida empresarial ou familiar próspera.

A virtude na governação e reflexões finais

Na sequência da crise financeira, tem-se discutido muito a importância da ética empresarial. A prática de virtudes na governação é também essencial se o governo quiser promover o bem comum e a justiça distributiva. Em conclusão deste capítulo, é útil relacionar o problema da dívida pública com a prática das virtudes no governo. O Pontifício Conselho «Justiça e Paz» (2005, 565-574) explica os desafios morais que os governos e os seus eleitores enfrentam e estas questões foram levantadas em várias encíclicas papais, incluindo, mais recentemente, na Fratelli tutti.

A prática da virtude da justiça pode tornar-se muito difícil em situações onde há uma dívida pública significativa, cuja acumulação pode ser considerada como uma injustiça em si mesma. Pode ser necessário tomar decisões para aumentar a carga fiscal para lá de níveis razoáveis, inflacionar a dívida ou impor custos arbitrários a alguns grupos que podem ser vulneráveis. Em alternativa, o governo pode optar por entrar em incumprimento ou reduzir programas vitais de apoio social. Todas estas medidas podem prejudicar princípios de justiça distributiva, mas o governo pode estar numa posição em que algumas ou todas estas ações são necessárias, como vimos.

O julgamento prudente, de acordo com o qual aqueles que governam sobriamente fazem julgamentos difíceis usando a informação disponível, também se torna muito mais difícil quando há interesses concorrentes que tentam evitar os custos da dívida pública.

A falta da virtude da temperança pode bem ter sido responsável pela acumulação da dívida em primeiro lugar. E quando a dívida atinge níveis elevados, esta virtude torna-se mais difícil de exercer tanto pelo governo como pelo eleitorado. Haverá a tentação de seguir estratégias que são atrativas no curto prazo, mas que, em última instância, podem ser destrutivas. Essas ações podem incluir a criação de inflação ou, até, o apoio a partidos políticos autoritários ou nacionalistas que tentam culpar os credores estrangeiros.

Finalmente, deve ser dito que a virtude da coragem se torna muito mais necessária nos países seriamente endividados. Enfrentar situações extremamente difíceis que acontecem quando um país tem de passar de uma situação em que gasta mais do que está disposto a pagar em impostos para uma situação em que a tributação é mais elevada do que a despesa pública requer coragem. Isto é verdade, quer em relação ao eleitorado, que pode optar por continuar a adiar o problema, quer em relação aos políticos, que se podem sentir tentados a responder a tais exigências.

Em última instância, poder-se-ia dizer que a dívida pública cria uma ocasião de pecado em que o comportamento virtuoso se torna difícil. De facto, a dívida pública pode ser considerada como parte de uma estrutura de pecado. Como Breen refere (2008), é doutrina da Igreja Católica, através de João Paulo II, que as estruturas de pecado são, em última análise, o resultado de uma escolha pessoal. E é certamente verdade que a dívida pública é, em última análise, o resultado de uma escolha pessoal – embora, como referimos, possa ser a escolha correta em algumas circunstâncias. Tais estruturas de pecado podem então criar condições na vida política e económica que obscurecem o juízo moral e tornam mais difícil o comportamento virtuoso. Esta é, certamente, a experiência dos países altamente endividados, ainda que muitos tenham passado por essa experiência sem o colapso da sociedade civil ou da política democrática. A situação atual de muitos governos altamente endividados sugere que esses países enfrentarão desafios consideráveis que exigirão o exercício das virtudes por parte dos governos e do eleitorado para que não haja uma desestruturação social grave e uma ameaça ao bem comum nas próximas décadas. Em muitos casos, pode considerar-se que esta acumulação de dívida e de futuras obrigações em matéria de segurança social prejudicou a justiça distributiva, especialmente entre as várias gerações. Pode também levar a que os governos se tornem incapazes de cumprir as suas funções essenciais, como exigido pela Doutrina Social Católica.

Referências

Booth, P. M. e Petersen, M. (2020), Catholic Social Teaching and Hayek’s Critique of Social Justice, Logos: A Journal of Catholic Thought and Culture, 23(1), 36-64.

Breen, J. M. (2008), John Paul II, The Structures of Sin and the Limits of the Law, St. Louis University Law Review, 52, 333-335.

Catholic Church (1994), Catechism of the Catholic Church, London: Geoffrey Chapman.

Gokhale, J. (2014), The Government Debt Iceberg, Research Monograph 68, London: Institute of Economic Affairs.

Gruber, J. (2019), Public Finance and Public Policy 6th edition, New York: Worth.

Hirschfeld, M. L. (2018), Aquinas and the Market – toward a humane economy, Cambridge: Havard University Press.

OBR (2018), Fiscal Sustainability Report – July 2018, London: Office for Budget Responsibility.

OBR (2020), Fiscal Sustainability Report – July 2020, London: Office for Budget Responsibility.

Pontifical Council for Justice and Peace (2005), Compendium of the Social Doctrine of the Church, London: Burns & Oates.

Seewald, P. (2010), Light of the World – the Pope, the Church and the signs of the times, San Francisco: Ignatius Press.

Tanner, M. (2015), Going for Broke: deficits, debt, and the entitlement crisis, Washington DC: The Cato Institute.

Wagner, R. E. (2012), Deficits, Debt and Democracy, Cheltenham: Edward Elgar.

Encíclicas papais e outros documentos da Igreja referidos neste capítulo

Francisco, 2020, Fratelli tutti, carta encíclica:

https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html

Francisco, 2015, Laudato si, carta encíclica:

https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html

Bento XVI, 2009, Caritas in veritate, carta encíclica:

https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate.html

João Paulo II, 1991, Centesimus annus, carta encíclica:

https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_01051991_centesimus-annus.html

João Paulo II, 1987, Sollicitudo rei socialis, carta encíclica:

https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_30121987_sollicitudo-rei-socialis.html

Pontifical Council for Justice and Peace, 1986, At the Service of the Human Community: An Ethical Approach to the International Debt Question:

https://www.ewtn.com/catholicism/library/at-the-service-of-the-human-community-2419

Paulo VI, 1967, Populorum progressio, carta encíclica:

https://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/encyclicals/documents/hf_p-vi_enc_26031967_populorum.html

Vaticano II, Gaudium et spes, 1965, Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Atual:

https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html

Leão XIII, 1891, Rerum novarum, carta encíclica:

https://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html

Perguntas para discussão

Como é que níveis excessivos de dívida pública se relacionam com os princípios Católicos de justiça distributiva?

De que modo níveis excessivos de dívida pública podem prejudicar os esforços do governo para promover o bem comum?

Que virtudes são necessárias para a gestão da política fiscal, e que virtudes são particularmente importantes quando os níveis de endividamento se tornam excessivos?

De que forma as crises de dívida pública e de declínio demográfico estão relacionadas?

Se um estado deve elevadas somas de dinheiro a um governo ou a uma organização internacional, até que ponto isso deve permitir que os credores controlem a política económica? E permitir que os credores influenciem a política económica em tais situações enfraquece ou promove o bem comum?

Notas de rodapé

[1] Ver também Gokhale (2014) para uma discussão aprofundada desta questão.

[2] Ver: https://www.youtube.com/watch?v=JqARepLm888 (aproximadamente ao minuto 29).

[3] São os detentores das obrigações do estado que vão colher o benefício correspondente, enquanto sacrificam o consumo corrente para emprestar ao estado.

[4] No Reino Unido, cerca de 40% de toda a dívida pública é detida por companhias de seguros e fundos de pensões britânicos. Ver: https://dmo.gov.uk/media/17379/oct-dec.pdf.

[5] Ver Booth e Petersen (2020) para uma discussão sobre a distinção entre estes dois tipos de justiça.

[6] No Reino Unido, por exemplo, pensões da administração local são financiadas e os fundos investidos, mas as pensões da função pública do estado e as pensões gerais de velhice não são financiadas por investimentos. Ambos são pagas pelo estado com receitas fiscais e contribuições para as pensões nacionais.

[7] Ver Rerum Novarum, 14. Esta situação foi também discutida por S. Tomás de Aquino.

Sobre os autores

Philip Booth é Professor de Finanças, Políticas Públicas e Ética na Universidade de St. Mary’s, Twickenham. É também o Diretor da Missão Católica em St. Mary’s e é o Diretor de Política e Investigação da Conferência dos Bispos Católicos de Inglaterra e do País de Gales. Ocupou anteriormente posições na Universidade de Buckingham, no Institute of Economic Affairs, na Cass Business School e no Banco de Inglaterra. É ainda Professor na Faculdade de Direito da Universidade de Notre Dame, Austrália. Philip é membro da Royal Statistical Society e membro do Institute of Actuaries.

Kaetana Numa é Investigadora Associada no Centre for the Study of Governance and Society no Departamento de Economia Política do King’s College London, onde concluiu o seu doutoramento em Economia Política em 2021. Antes de iniciar a sua investigação de doutoramento, trabalhou num think tank na Lituânia durante quase uma década. Kaetana é licenciada em Economia e Relações Internacionais (Cum Laude) pela Tufts University e obteve o seu Mestrado em Estudos Religiosos na Vilnius University.

Stephen Nakrosis é um jornalista de New Jersey e estudante de doutoramento na Mary’s University, Twickenham. Escreveu sobre a Doutrina Social Católica e hagiografia em várias publicações. Atualmente trabalha para uma importante agência de notícias financeiras sediada em Nova Iorque.

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