Contexto
A Doutrina Social da Igreja (DSI), entendida como o conjunto das declarações e documentos sobre questões sociais feitas pelo Igreja Católica, faz parte da missão evangelizadora da responsabilidade diante da dignidade humana e o bem comum na vida em sociedade. Dentre os principais documentos e pronunciamentos da Igreja na atualidade que atuam neste sentido, podemos destacar as Encíclicas Laudato si (2015) e Fratelli tutti (2020). Tais textos trazem, em seu conteúdo, aspectos integrativos aos princípios da DSI quando abordam respectivamente, o cuidado da casa comum e à fraternidade e amizade social. Além disso, pode-se citar o projeto de ação conjunta, proposto pelo Papa Francisco, em sua conclamação à um Pacto Educativo Global, onde a educação é entendida como emergência ativa e formativa capaz de intervir em todos os processos da vida pessoal e social. São os documentos que abordaremos neste texto.
Breve introdução aos princípios da Doutrina Social da Igreja
Essa reflexão é fruto da participação no painel em evento promovido pela Universidade Católica Portuguesa, no Centro de Investigação do Instituto de Estudos Políticos (IEP), sobre a influência da Doutrina Social da Igreja na elaboração de políticas públicas, no contexto da globalização e da sociedade civil lusófona. Foram abordadas as influências expressas em três aspectos da Doutrina Social da Igreja, como apresentada nesta reflexão: nas duas últimas encíclicas pontifícias, Laudato si e Fratelli tutti, bem como as implicações da proposta para o Pacto Educativo Global.
Para introduzir os princípios da Doutrina Social da Igreja, cabe trazer a significância do cristianismo nesse contexto. Aderir a fé cristã implica em um ato da liberdade humana, que ilumina o intelecto para compreender melhor o nosso projeto de vida pessoal e de sociedade. Esta iluminação, aponta para o mundo visível do progresso temporal e para as significações mais profundas do eterno como algo atemporal, como um desvelar interpretativo para além da factibilidade. Nesse sentido, exige tomada de posição no âmbito das decisões fundamentais afora um sentido produzido, mas para um sentido encadeado “ao logos que sustenta e conserva todas as coisas” (RATZINGER, 2005. Pg. 55).
Voltar-se à esta inspiração se torna ainda mais relevante em tempos turbulentos como os que vivemos nesta crise sanitária global. Se já no final do milênio anterior a relação indivíduo e sociedade encontrava-se presente tanto na questão sobre o valor da vida, quanto em sua organização social, a contemporaneidade expõe o fluxo planetário interdependente e correlacional entre os seres. Apontava-se a convicção crescente de que o gênero humano enquanto presença dominadora e pouco cuidadora e que em reversão à esta arbitrariedade, lhe competia o estabelecimento de uma ordem política, social e econômica, que servisse e contribuísse com a respeitabilidade de pessoas e grupos sociais na afirmação de sua própria dignidade[1].
A concepção cristã de ser humano, não concebe indivíduo enquanto indigno ou indivisível, ao contrário, este é caracterizado por uma identidade de pessoa, enquanto singularidade (ser em si) e relação (ser comunitário) em primazia de direitos. Dessa forma, no plano social, o bem comum não está desarticulado do bem particular. Inclusive, os critérios partem de princípios que marcam o ser e o agir como sociedade humana. Rompe-se assim a ideia de uma sociedade abstrata ou uma justaposição de seres em uma engrenagem.
Nesta esteira, a Doutrina Social da Igreja (DSI), vem afirmar o ser humano enquanto pessoa essencialmente social. Em seu conjunto de princípios, consagra três valores humanos fundamentais: verdade, justiça social e liberdade[2]. Por verdade, aponta-se o agir condizente ao compromisso ético social com a integridade humana. Não está na esfera da superficialidade das opiniões e investigações efêmeras. A verdade faz emergir a honestidade pessoal e comunitária. Por justiça, pode-se partir da máxima tomista: “dar ao outro o que lhe é devido” (AQUINO, 1807). Nesse sentido, expressa a vontade de reconhecer o outro em sua dignidade de pessoa. Uma justiça social, exige a conexão social e mundial, relacionada às condições de vida humana diante de aspectos sociais, políticos e econômicos. Por liberdade ontológica ou mesmo pela ação livre, fato é que responder ao livre-arbítrio requer autodomínio e compreensão do valor da dignidade do outro como uma alteridade. O ser humano só se compreende a partir do outro.
Os valores presentes, encontram-se como colunas que estruturam os direitos humanos como universais, invioláveis e inalienáveis, garantindo assim, a busca do desenvolvimento não reduzida à um mero crescimento econômico. Por isso, na centralidade desses três valores essenciais, encontra-se a pessoa humana em sua dignidade, tanto enquanto unicidade como parte do tecido do social. As expressões sobre a verdade contida neste conjunto de princípios, encontram-se na relação entre bem comum, subsidiariedade e solidariedade[3].
No curso da história, o progressivo esforço em responder com coerência às exigências dos tempos, com olhar diagnóstico aos cenários concretos e complexos, análise dos fenômenos vivenciais das realidades múltiplas, reclama, à universalidade de significados criteriosos no agir social. Assim, como gênese e finalidade, os princípios da Doutrina Social da Igreja solicitam conexão e articulação no “corpus” orgânico das realidades.
Neste sentido, é necessário deixar-se guiar pelo desenvolvimento integrativo à totalidade da pessoa humana, que respeite todas as dimensões do seu ser e subordine as necessidades materiais e instintivas às espirituais. Como patrimônio da reflexão e propósito essencial da mensagem cristã, a consciência do sentido do viver, e do conviver em sociedade, interpela e convida cada pessoa e comunidade a interagir com as demais, como corresponsáveis pelo progresso e dignificação da humanidade. Historicamente, o entrelaçamento das liberdades humanas, interagem ou para edificar tal dignidade ou para empobrecê-la. Por conseguinte, “concerne quer ao agir pessoal dos indivíduos, enquanto primeiros e insubstituíveis sujeitos da vida social em todos os níveis, quer, ao mesmo tempo, às instituições, representadas por leis, normas de costume, e estruturas civis”[4], a primazia moral do valor inalienável da pessoa humana inserida nos princípios sociais em seus significados e implicações.
O princípio do bem comum, para além do somatório de bens particulares ou justaposição de competências, traz por síntese a unidade: “sendo de todos e de cada um, é e permanece comum”[5] como propósito para o autêntico desenvolvimento como exigência integral, ou seja, promover todos os seres humanos e o ser humano todo. A realização humana, segundo o valor do bem comum, não está na esfera da autossatisfação ou da autorreferencialidade alheia ao outro. Ao contrário, a lógica do bem comum está no ser com e pelos outros, salvaguardando a corresponsabilidade.
Outra diretriz expressa na Doutrina Social da Igreja, diz respeito à subsidiariedade. As relações entre os indivíduos e organizações que sustentam a sociedade civil de modo comunitário, acabam por reconhecer formas mais elevadas de sociabilidade, na medida em que, sinalizam a entreajuda no sentido positivo. Concretamente, o princípio da subsidiariedade com contrasta com formas centralizadoras de poder. Dentre as indicações concretas, é possível identificar:
o respeito e a promoção efetiva do primado da pessoa e da família; a valorização das associações e das organizações intermédias, nas próprias opções fundamentais e em todas as que não podem ser delegadas ou assumidas por outros; o incentivo oferecido à iniciativa privada, de tal modo que cada organismo social, com as próprias peculiaridades, permaneça ao serviço do bem comum; a articulação pluralista da sociedade e a representação das suas forças vitais; a salvaguarda dos direitos humanos e das minorias; a descentralização burocrática e administrativa; o equilíbrio entre a esfera pública e a privada, com o consequente reconhecimento da função social do privado; uma adequada responsabilização do cidadão no seu «ser parte» ativa da realidade política e social do país.[6]
Tal perspectiva, aponta para a participação cidadã comunitária e democrática, conjugando os direitos e os deveres de todos em vistas ao bem comum. Para isso, superações de obstáculos que se interpõem à participação solidária dos cidadãos, exigem autêntica ação informativa e educativa.
Sobre o princípio da solidariedade, articulada à dignidade e direito de todos, significada na intrínseca sociabilidade e interdependência, torna-se urgente enquanto expansão social e superação das diferentes formas de corrupção, opressão e exploração humana. O princípio ético-social reclama à edificação de estruturas solidárias estreitas que ressaltam os valores fundamentais da vida comum[7].
Na perspectiva de um humanismo integral e solidário[8], tais princípios sociais vêm contribuir com a perseverança das responsabilidades comuns voltados ao bem da humanidade atual e também, vindoura. Assim, diante do contexto globalizado, através de um vínculo comunitário, social e planetário, assume-se não apenas o compromisso imediato, mas de igual modo, a verticalização intergeracional, onde as contingências imputam-se do horizonte intransferível da vida presente e futura traçando caminhos de justiça e paz.
Do cenário atual
A crise atual acelerou as desigualdades em um mundo globalizado, assimétrico e carente de lideranças. A situação requer que sejam reforçados os valores da vida, da justiça e do cuidado. Solicita, mais do que nunca, a reflexão e a prática de um novo humanismo. Um humanismo como atitude, uma nova forma de estar no mundo e se relacionar com a natureza e com os homens e mulheres. E fazer isto de forma cooperada, fraterna, JUNTOS. Aprofundando a consciência do cuidado com os outros em alinhamento ético das ações.
Como líder de esfera política e eclesial, o cenário atual tem sido marcado pela presença significativa do Papa Francisco pelos princípios humanistas e sociais. Em sua recente viagem histórica ao Iraque, no encontro inter-religioso dos “Filhos de Abraão”[9] ocorrido na planície de Ur, em seu discurso, pronunciou: “Precisamos de sair de nós mesmos, porque temos necessidade uns dos outros”. O pontífice recordou que diante da pandemia do COVID-19, é preciso ter presente que o princípio “salve-se quem puder” se traduzirá rapidamente como um “todos contra todos” se a existência seguir no passo desumanizante da lógica individualista que vê o outro como ameaça ou recurso utilitário.
Em outubro de 2020, na cidade italiana de Assis, Francisco assina a Encíclica Fratelli tutti (Todos irmãos). O conteúdo refere à fraternidade e amizade social como caminho de existência comum e planetária: a existência pessoal integra a experiência relacional da vivência comum. Esse exercício humano de enxergar-se como parte da comunidade humana – a humanidade – exige consciência social inclusiva e amigável: “cuidar do mundo que nos rodeia e sustenta significa cuidar de nós mesmos. Mas precisamos de nos constituirmos como um ‘nós’ que habita a casa comum”.
O Papa Francisco explora em profundidade na Encíclica Fratelli tutti, a atenção e o cuidado com o próximo, como nos ensina a metáfora do Bom Samaritano no livro sagrado[10]. Esse cuidado, assumido como valor, carrega o acento antropológico e ético do qual a atualidade carece: “dar-se conta de quanto vale um ser humano, de quanto vale uma pessoa, sempre e em qualquer circunstância”.
O cenário global é alarmante no que diz respeito as decorrências da crise sanitária. Segundo o Observatório da COVID-19 BR, a situação anunciada não vai se reverter de forma natural no Brasil. A aceleração do contágio, indica a urgência de ações coordenadas entre as políticas públicas e atitude populacional responsável e colaborativa. O caso do Brasil, de forma rápida e ampla, vive um cenário sociopolítico complexo, com o país radicalmente dividido em termos de políticas públicas. Uma sociedade sofrendo de forma violenta uma convergência de crises e suas consequências nas dimensões da saúde, da gestão pública, dos impactos econômicos e sociais, na educação e nas pessoas. O Governo Federal atua com significativos apoios e influência de setores como o da defesa e também, com apoio das igrejas evangélicas pentecostais.
Por outro lado, a Igreja Católica segue tendo importante influência nos rumos da sociedade e relevância nos debates e reflexões sobre o futuro do país, em áreas como educação, saúde, liberdade e justiça. A CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) é uma das mais relevantes e respeitadas instituições nacionais, no cenário de um Estado Nacional laico, civil e republicano. A população que professa a religião católica representa mais de 50% da população brasileira, sendo que os evangélicos são mais de 30%, enquanto 10% se dizem sem religião e os demais 10% professam outras religiões (como espíritas, judeus e religiões de origem africana).
Nesse sentido, abordar os princípios humanos de construção de diálogo e estratégias colaborativas de impacto positivo, vem irradiar no cenário nebuloso, possibilidades e oportunidades de novos percursos. Se o cenário histórico-político, sociocultural e econômico marcado pela pandemia, exige ação urgente, superar a agudez da desumanidade, é sair da passividade anestesiada que suprime a atitude pessoal e comunitária de transformação das realidades locais e globais.
A encíclica Ambiental: Laudato si
A Encíclica Laudato si, completou 5 anos em meio à crise pandêmica global. Um texto com conteúdo de vanguarda que segue iluminando o cenário e apontando para horizontes para além da factibilidade temporal. O Papa Francisco na Laudato Si busca na esteira da DSI, os princípios de sua gênese e finalidade e atualiza seus aspectos diante o milênio atual, constituindo um olhar histórico ao lado da Rerum Novarum de Leão XIII e a Populorum Progressio de Paulo VI. Trata-se de uma síntese de tudo que se discute em ecologia atualmente. Caracteriza-se pela abordagem radical da ecologia integral em prospectiva sistêmica.
O primeiro aspecto abordado envolve a encíclica ambiental, a Laudato si, apontando para o cuidado com a casa comum, o planeta e seu ecossistema. Esta encíclica tem enorme impacto na discussão da questão ambiental, apresentando uma visão planetária de que tudo está conectado: o ser humano, a terra e a natureza. Entende o planeta como a nossa casa comum e a humanidade como família humana. Destruir a natureza é como destruir o próprio ser humano singular e social. Neste sentido, a proteção ambiental está relacionada com a proteção ao ser humano e em especial aos mais necessitados, aportando uma visão de esperança (BRULLE; ANTONIO, 2015)
A abordagem entendida como uma ecologia integral, envolve todo o documento, abordando sobretudo aspectos políticos, bem como, teológicos e filosóficos. A crise climática reflete uma crise ética da humanidade, gerada simultaneamente pela ruptura das três relações fundamentais da existência: a ruptura das relações com o próximo (entre as pessoas), com a terra (a natureza) e com Deus (a espiritualidade). A encíclica chama para uma educação e espiritualidade ecológicas, apontando para outro estilo de vida possível e desejável, visando educar para a aliança entre a humanidade e o ambiente natural.
A questão da tecnologia é apontada como uma encruzilhada, após dois séculos de enormes avanços tecnológicos, fruto da criatividade humana e do avanço do conhecimento científico. A tecnociência, quando bem orientada pode gerar uma melhoria da qualidade de vidas das pessoas. Mas também pode concentrar mais ainda o poder e nem toda aquisição de poder se reflete em progresso, aumento de segurança, de utilidade, de bem estar, de força vital, de plenitude de valores. A verdade é que o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano quanto à responsabilidade, aos valores, à consciência.
A revolução da tecnociência gerou um problema central: o modo como a humanidade assumiu a tecnologia e o seu desenvolvimento, gerando a globalização do paradigma tecnocrático. Isso gerou a ideia de um crescimento infinito ou ilimitado, que ilude muitos economistas, e teóricos das finanças e da tecnologia. Esta visão se baseia no conceito incorreto da disponibilidade infinita dos bens da terra. Este paradigma tecnocrático domina também a economia e a política. Uma economia que assumiu ao longo da segunda metade do século XX todo o desenvolvimento tecnológico e das empresas em função do lucro, sem prestar a devida atenção aos impactos negativos sobre a natureza e a crescente desigualdade social no mundo. As crises financeiras do final da década de 2000 e ambiental que vivemos neste século são fruto desta visão equivocada e socialmente injusta.
A encíclica social: Fratelli tutti
A encíclica Fratelli tutti, já citada anteriormente, é o texto mais recente que, de forma contundente, aborda os princípios cristãos frente a globalização e panorama sociopolítico mundial. Assim, o segundo aspecto abordado envolve a encíclica social, a Fratelli tutti, sobre a fraternidade e a amizade social, como condições para se construir um mundo melhor, mais justo e pacífico. Esta encíclica aborda diretamente as questões sociais e clama contra a globalização da indiferença e da falta de interesse pelo bem comum. Destaca que este cenário gera a deformação dos conceitos de democracia, de liberdade e de justiça, a prevalência do mercado, do dinheiro e do lucro, bem como a cultura do descarte, do desemprego e da desigualdade.
Com relação à tecnologia, ressalta que seria bom se o aumento das inovações científicas e tecnológicas correspondessem também a uma equidade e inclusão social cada vez maiores. Ao tomar por exemplo a crise sanitária da COVID19, destaca a necessária consciência de que somos uma comunidade mundial que viaja no mesmo barco, em que o mal de um prejudica a todos. Assim, nos recorda de que ninguém se salva sozinho, de que só é possível salvarmo-nos juntos. Como tudo está interligado, é difícil pensar que esta crise sanitária não tenha a ver com a nossa maneira de agirmos e entendermos o processo de desenvolvimento.
A encíclica centra sua atenção no cuidado ao próximo, no antigo preceito de que devemos amar o próximo como a nós mesmos e não fazer aos outros o que não queremos que façam conosco. Neste sentido, a mensagem é que de que a humanidade deve se orientar pela busca do bem comum. De todos. Juntos. Pois a existência de cada um de nós está ligada à dos outros: a vida não é o tempo que passa, mas tempo de encontro. Isto significa algo profundo: não devemos deixar ninguém para trás. Não podemos deixar ninguém caído nas margens da vida. A dignidade da vida deve ser respeitada integralmente.
Esta visão clama pelo respeito à diversidade das etnias, raças, gênero, sociedades e culturas, pois devemos ser uma comunidade feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros. No entanto, sob a ótica da Fratelli tutti, a fraternidade não assume cunho superficial ou ingênuo. Precisamos urgentemente aprender a vivermos conjuntamente, em harmonia e paz, sem necessidade de sermos todos iguais. É uma outra lógica de vida em comum com respeito à inalienável dignidade humana, criando as condições de aceitar o desafio de sonhar e pensar em uma humanidade diferente, que garanta alimentação, teto e trabalho para todos. Uma verdadeira paz real e duradoura somente será possível a partir de uma ética global de solidariedade e cooperação a serviço de um futuro modelado pela interdependência e a corresponsabilidade da humanidade.
De uma forma sintética, a Fratelli tutti propõe a atenção e o cuidado com o próximo. Nos convida a sair de nós mesmos. O amor ao próximo e à vida. Isto requer uma nova ética global, que reconheça que precisamos uns dos outros, juntos. Isso significa foco na dignidade humana, no diálogo e na amizade social, a arte do encontro entre povos e culturas, a serviço da fraternidade no mundo.
O Pacto Educativo Global
Como proposta de emergência formativa atual, o Papa Francisco conclama a humanidade em reconstruir o que chama de Pacto Educativo Global. Desde 2013, por ocasião de sua Exortação Evangelii Gaudium que marcou um novo percurso da Igreja neste milênio, a formação como diligência de um humanismo integral e solidário vem trazendo a educação como via privilegiada de ação renovada a ser assumida de pessoa a pessoa e em aliança comunitária.
Com os fundamentos já explicitados, o terceiro aspecto aqui apresentado, envolve a educação, por meio do Pacto Educativo Global proposto pelo Papa Francisco e visa unir todo o mundo em torno da educação, que dialoga profundamente com as encíclicas citadas anteriormente citadas, Laudato si e Fratelli tutti, no fluxo contínuo dos princípios da DSI.
Em sua proposta original, o Pacto apresentado em 2019, hoje em pleno desenvolvimento em diversas comunidades no mundo inteiro, contribui no sentido de trazer à luz a contribuição da Igreja Católica, incluindo a sua longa tradição educativa e a necessária percepção sociopolítica relacionada. A Igreja está na origem do surgimento e no desenvolvimento da ideia de escola desde o período medieval e, principalmente, de Universidade, desde o século XI. Sua importância é ainda mais evidenciada nas primeiras comunidades educativas brasileiras, considerando escolas e depois as Universidades, desde o século XVI.
O Pacto apresenta a visão de que somente pela educação humanizadora, solidária, livre e bem-intencionada, é possível reverter a situação atual. Transformando a indiferença e a racionalidade pura em cuidado e atenção, simultaneamente pela pessoa humana e pela casa comum, com uma cultura da paz e de respeito pelos diretos humanos. Alerta ainda, para que este movimento não seja somente mais um evento global, mas que implique em alinhamento com outras iniciativas e propósitos globais, como a kairós, em mudanças estruturais e estratégicas em nossa forma de agir no campo da educação. Kairós é considerado o agora presente, como o tempo oportuno que transcende o cronos temporal. Diante das circunstâncias, o kairós traz a pedagogia das essências do humano, voltando o ser à temporalidade do logos que sustenta e orienta todas as coisas.
A mensagem em vídeo do Papa Francisco, em 15 de outubro de 2020, por ocasião do encontro promovido pela congregação para a educação católica “Global Compact on Education. Together to Look Beyond”, iniciou com o panorama amplificado gerado pela pandemia de COVID-19:
Quando vos convidei para iniciar este caminho de preparação, participação e lançamento de um pacto educativo global, nunca me passou pela cabeça a situação em que havia de desenrolar-se; o COVID acelerou e amplificou muitas das urgências e emergências que sentíamos, e revelou outras. Às dificuldades sanitárias, seguiram-se as econômicas e sociais. Os sistemas educativos do mundo inteiro sofreram com a pandemia, tanto a nível escolar como acadêmico. (FRANCISCO, 2020d)
Ressaltando a rápida resposta das redes educacionais através das plataformas digitais, o Papa Francisco evidencia a acentuada disparidade de acesso à tecnologia e à educação enfrentadas pelas novas gerações, “mas também o fato de muitas crianças e adolescentes, devido ao confinamento e outras carências anteriores, terem sofrido atrasos no processo normal de desenvolvimento pedagógico”. (FRANCISCO, 2020d)
Além disso, o pontífice recorda que no atual contexto, receitas simplistas e vãos otimismos não contribuirão:
Conhecemos o poder transformador da educação: educar é apostar e infundir no presente a esperança que rompe os determinismos e fatalismos com que, muitas vezes, o egoísmo do forte, o conformismo do vulnerável e a ideologia do utopista se querem impor como único caminho possível. (FRANCISCO, 2020d)
A pedagogia de Francisco reconhece na educação, um ato de esperança que convida à transformação do que chama de “lógica estéril e paralisadora da indiferença” (FRANCISCO, 2020d) para uma lógica capaz de acolhimento da pertença comum e questiona:
Se hoje deixássemos os espaços educativos continuarem a reger-se pela lógica da substituição e repetição, incapazes de gerar e mostrar novos horizontes, onde a hospitalidade, a solidariedade intergeracional e o valor da transcendência fundamentem uma nova cultura, não estaríamos porventura a falhar o encontro com a História? (FRANCISCO, 2020d)
O Papa recorda que a história apresenta momentos em que “é preciso tomar decisões basilares que imprimam marcas na nossa forma de viver e principalmente uma posição correta face aos possíveis cenários futuros”. Diante da atual crise pandêmica, se o desânimo e as perplexidades comunicam a realidade histórica, por outro lado, revelam “a oportunidade que a interdependência mundial oferece à comunidade e aos povos, cuidando da nossa casa comum e tutelando a paz”(FRANCISCO, 2020d).
Vivemos em um momento de profundas transformações na sociedade, em um contexto de incertezas e instabilidades de todas as ordens. Por isso, mais do que nunca, emerge a questão da educação como ponto central para atuarmos no sentido da busca de soluções aos desafios presentes. De forma inovadora, ou seja, transformadora. Ao entendermos a Educação como o mais poderoso processo de inclusão, mobilidade social e melhoria da qualidade de vida das pessoas, temos uma oportunidade de, pela educação, mudar o mundo. Para melhor. Para todos.
Neste sentido, o grande desafio que temos que enfrentar é a construção de uma nova educação, para uma nova sociedade. Uma nova educação que incida sobre toda a vida das pessoas (long life learning), alinhada com as necessidades sociais, econômicas e do trabalho no século XXI. Que contemple as novas competências e habilidades requeridas, tais como a criatividade, a inteligência emocional, a inovação, a preservação do meio ambiente, o empreendedorismo e a liderança, além do domínio das novas tecnologias, que são a base para o desempenho pessoal e profissional neste século.
Uma educação que contemple, de forma substantiva, a formação para a cidadania das pessoas, o respeito a diversidade e aos valores globais, expressos em documentos e encíclicas citadas, mas também em conteúdos globais fundamentais como a Declaração dos Direitos Humanos da ONU (1948), o Acordo de Paris sobre as Mudanças Climáticas (2015) e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (2015). Uma educação com o propósito de construirmos um novo processo de desenvolvimento global, que busque o constante equilíbrio entre a sustentabilidade ambiental, social e econômica.
Esta nova educação deve conciliar as humanidades com as ciências e a tecnologia, visando formar pessoas plenas, conscientes de suas responsabilidades e possibilidades. Formar cidadãos livres, solidários, comprometidos e inovadores. Que tenham a capacidade de transformar a sociedade na área de inovação, fazendo isto de forma participativa, transdisciplinar, usando abordagens de ensino híbridas e metodologias ativas de aprendizagem, novos espaços e ambientes de aprendizagem, estimulando a criatividade e com foco nos grandes desafios da sociedade, por exemplo com os expressos nos 17 ODS (objetivos de desenvolvimento sustentável).
Reflexão Final
Uma abordagem central neste processo é a busca incessante de um novo consenso global sobre uma nova educação com delineamentos compartilhados por todos os países, destacado o papel relevante dos Estados nacionais na priorização inequívoca da Educação nas suas políticas públicas. Estamos falando de uma verdadeira oportunidade de transformação educativa, inovadora, que afete significativamente as bases epistemológicas, antropológicas, éticas, políticas, culturais, econômicas, sociais, ambientais e metodológicas. Pelo bem da humanidade e do futuro de todos nós. Oxalá, possamos criar uma nova mentalidade acerca das atitudes do ser humano em relação ao nosso planeta e as pessoas, mudando a nossa percepção do mundo e dos valores que nos orientam. Apurar a nossa sensibilidade, nos faz refletir sobre o sentido da atuação humana por meio de provocações individuais e coletivas.
Finalmente, por meio do exemplo destes dois documentos e ações integrativas ao encontro da emergência educacional, no contexto da Doutrina Social da Igreja, as encíclicas Laudato si e Fratelli tutti e o Pacto Global pela Educação, temos como consequência impacto e influência nas reflexões e políticas públicas não só no Brasil, mas no mundo todo. Assim atuando, as diversas instituições católicas no mundo, como a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, criam espaços de reflexão e reverberação da Doutrina Social da Igreja, seja via a ação evangelizadora, usando a encíclicas ambiental e social como referência, seja via o protagonismo e relevância na formulação de políticas e ações na sociedade. Sendo o maior impacto o chamamento à solidariedade e à responsabilidade dos países e das pessoas para vencer as desigualdades e a pobreza global. Clamando por uma ética global de fraternidade no mundo.
Referências
AQUINO, São Tomás. Catecismo da Igreja Católica, 1807. Summa theologiae, II-II, q. 58, a. 1: Ed. Leon. 9, 9-10.
BRULLE, Robert; ANTONIO, Robert. The Pope´s fateful of hope for society and the planet. Nature Climate Change, 5, p. 900-901, 2015.
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Encíclicas papais e outros documentos da Igreja
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PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. 7. Ed. São Paulo: Paulinas, 2011.
Notas de rodapé
[1] CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. 1962-1965, Cidade do Vaticano. Gaudium et Spes: Documentos do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2001. [9].
[2] Tais princípios encontram-se mais amplamente argumentados no capítulo IV da Doutrina Social da Igreja.
[3] PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. 7. Ed. São Paulo: Paulinas, 2011.[160]
[4] PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. 7. Ed. São Paulo: Paulinas, 2011.
[5] PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. 7. Ed. São Paulo: Paulinas, 2011.
[6] PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. 7. Ed. São Paulo: Paulinas, 2011.
[7] PONTIFÍCIO CONSELHO “JUSTIÇA E PAZ”. Compêndio da Doutrina Social da Igreja. 7. Ed. São Paulo: Paulinas, 2011.
[8] Humanismo integral e solidário refere-se a abordagem do filósofo francês católico, Jacques Maritain (1882 -1973). Maritain é uma personalidade articuladora de princípios humanistas conjugados com valores sociais que incidem em documentos do Concílio vaticano II basilares até hoje. O filósofo pode contribuir com a UNESCO na origem da Declaração dos Direitos Humanos, em 1948.
[9] O encontro recebeu essa configuração por se tratar do encontro dos líderes das religiões tradicionais que se derivam da origem do patriarca Abraão: judeus, cristãos e muçulmanos.
[10] Cf. Lc 10, 25-37.