Catholic Social Thought

Unidade de curso online 1

Introdução

André Alves, Philip Booth SOBRE OS AUTORES

Catholic Social Thought

Prudência na aplicação dos princípios da Doutrina Social da Igreja

O principal objetivo deste livro é promover um melhor entendimento da relação entre o pensamento social Católico e as políticas públicas. Um objetivo subsidiário é examinar a relação entre as políticas públicas, as empresas e a sociedade civil. São temas difíceis de abordar. Os especialistas em políticas públicas não têm, por regra, a formação teológica necessária para assegurar que o pensamento social Católico é considerado de modo adequado em termos académicos. Ao mesmo tempo, é relativamente raro que os teólogos possuam o conhecimento especializado necessário para cruzar a ponte entre conhecimento teórico e conhecimento empírico em temas de economia e economia política de modo a fazer juízos prudenciais adequados. Contudo, à medida que o interesse pelo pensamento social Católico aumenta, o número de pessoas com a necessária amplitude de experiência intelectual tem vindo a aumentar. Este livro reúne alguns desses académicos.

A Igreja Católica sempre se pronunciou sobre questões relacionadas com a vida política, económica e social. A encíclica Rerum novarum, publicada em 1891, é geralmente identificada como o ponto de partida daquela doutrina de um ponto de vista formal. No entanto, o pensamento social Católico, a Doutrina Social da Igreja e o testemunho são tão antigos como a própria Igreja.

Existem ligações importantes entre as políticas públicas na esfera económica e questões morais objetivas, que podem estar relacionadas com temas como a fraude, o roubo, a mentira, a opressão física dos trabalhadores, etc.: os nossos autores exploram algumas dessas ligações. Contudo, há critérios adicionais pelos quais grande parte das políticas económicas e sociais devem ser julgadas. Este processo de julgamento requer a virtude da prudência. Como tal, os assuntos discutidos neste livro são muitas vezes descritos como “assuntos de juízo prudencial” e são questões sobre as quais dois católicos razoáveis e fiéis podem discordar. Este facto distingue estes assuntos do ensinamento moral e teológico da Igreja, que deve ser defendido por todos os Católicos fiéis.

A prudência é a virtude que dispõe a razão prática a discernir o nosso verdadeiro bem em todas as circunstâncias e a escolher os meios corretos para o alcançar (Catecismo da Igreja Católica,[1] parágrafo 1806). No domínio das políticas públicas, a prudência é importante por várias razões.

Em primeiro lugar, ajuda-nos a determinar os nossos objetivos e isto é importante porque, em questões económicas, é necessário estabelecer compromissos. Podemos considerar desejável que, num país pobre, passemos de uma situação em que há ensino primário universal para uma situação em que todas as crianças têm o ensino secundário – mas como vamos conseguir isso se as famílias não conseguem pagar cuidados básicos de saúde ou um nível de vida razoável em outros aspetos?

Em segundo lugar, a prudência é necessária para determinar a forma como atingimos determinados objetivos. Neste aspeto, os princípios da Doutrina Social da Igreja acrescentam riqueza às filosóficas seculares. Um economista utilitarista, por exemplo, poderia defender que deveríamos utilizar os instrumentos políticos que permitem atingir um certo objetivo de forma mais eficiente e que, por conseguinte, utilizem menos recursos económicos para um determinado resultado. Já um estudante da Doutrina Social da Igreja ponderaria outros aspetos. Um Católico não sacrificaria a vida de um nascituro com vista a um maior crescimento económico ou um nível de vida mais elevado para uma família. Um Católico não promoveria a eutanásia para libertar mais camas de hospital para doentes mais jovens. Um Católico pode apoiar a autonomia da família na educação, mesmo que isso conduza a resultados educativos piores considerando os resultados dos testes (embora isso seja improvável), porque permitiria aos pais exercerem a sua consciência na escolha de uma escola para os seus filhos. Todas as decisões sociais e económicas têm dimensões morais e não devem ser vistas através de lentes utilitaristas e materialistas. A perspetiva da Doutrina Social da Igreja tem algo a acrescentar aos debates sobre políticas públicas.

Em terceiro lugar, a prudência é necessária na consideração do papel legítimo do governo. E é aqui que, muitas vezes, se verifica a maior controvérsia entre os Católicos. A maioria dos autores dos capítulos deste livro poderiam ser descritos como apoiando um amplo espaço de liberdade para a economia e sociedade civil e um papel mais limitado para o governo do que é comum em muitas sociedades ocidentais. De um modo geral, também preferem que as decisões políticas sejam locais e descentralizadas, ao invés de o poder se situar ao mais alto nível do governo. Alguns comentadores, adotando uma abordagem algo reducionista, descrevem estas posições como “libertárias” e “neoconservadoras”, confundindo dois termos que significam coisas diferentes (ver Finn, 2011). Mas trata-se de uma abordagem pouco útil e adequada, criando mais calor do que luz (ver Mueller, 2011).

Há boas razões, que se relacionam com a natureza humana, para justificar a necessidade de ação do governo para resolver os problemas da economia e da sociedade. Contudo, há também boas razões para supor que a tentativa de resolver os problemas recorrendo diretamente à intervenção do governo central não é sempre a melhor abordagem (ver Booth, 2021). Nenhum ser humano foi abençoado com omnisciência para ser capaz de planear centralmente aspetos da vida económica e social com a certeza de ser bem-sucedido. As instituições da sociedade civil, e outras que atuam numa economia livre, podem utilizar conhecimento descentralizado e o seu entendimento íntimo dos problemas que estão a tentar resolver e dos indivíduos com quem se relacionam quando tentam resolver problemas sociais. O conhecimento local de circunstâncias específicas de tempo e lugar, bem como o envolvimento pessoal e comunitário com os assuntos em questão são muitas vezes requisitos essenciais para uma ação bem-sucedida. Neste espírito, os autores dos capítulos deste livro são a favor de menos estado e mais sociedade. O Papa João Paulo II fez esta distinção entre estado e sociedade na encíclica Centesimus annus, tal como o Papa Leão XIII na Rerum novarum e o Papa Bento XVI na Deus caritas est. Na Doutrina Social da Igreja, esta abordagem encontra-se plasmada no princípio da subsidiariedade.

É claro que qualquer abordagem para pensar os problemas da economia política num contexto católico tem de ter em consideração a nossa natureza pecaminosa. Neste contexto, a questão da prossecução do interesse próprio é frequentemente levantada. Não se trata de uma questão simples. Numa economia de mercado, o interesse próprio perseguido no contexto de um quadro institucional sólido pode muitas vezes ser uma força construtiva na medida em que as transações de mercado requerem trocas mutuamente benéfica para as partes (ver Centesimus annus, 25). Contudo, quando o interesse próprio é desordenado e se transforma em egoísmo, as coisas podem correr muito mal. Um vasto leque de escândalos empresariais pode ser imputado a comportamentos pouco éticos e egoístas por parte daqueles que ocupam posições de poder no mundo dos negócios.

A Igreja Católica propôs que a atividade económica fosse regulada para resolver esses problemas (ver Caritas in veritate, 65). No entanto, também é legítima a preocupação de que o egoísmo e a prática desonesta se possam manifestar na ação do governo. Não podemos, portanto, simplesmente recorrer ao governo para resolver os problemas que surgem nas economias de mercado e esperar que sejam automaticamente resolvidos. De facto, a natureza do governo é tal que o egoísmo, a ganância e a desonestidade podem ser catastróficos quando se manifestam através das estruturas do estado. A fortuna estimada de Muammar Gaddafi, da Líbia, por exemplo, era de 75 mil milhões de dólares quando os seus bens foram congelados. A do antigo presidente Mubarak, do Egito, era de 1,2 mil milhões de dólares. Há muitos outros exemplos que poderiam ser referidos. Estas fortunas não foram certamente resultado de transações mutuamente benéficas entre os ditadores e as suas populações. A corrupção pode unir interesses comerciais e políticos prejudiciais ao bem comum e aos interesses do povo como um todo. Tanto o Papa Francisco como o Papa João Paulo II levantaram esta questão específica em encíclicas e outras cartas (Alves e Booth, 2022).

Poderíamos resumir este argumento dizendo que não se deve esperar que uma instituição imperfeita (o governo) seja capaz de aperfeiçoar outras instituições imperfeitas (o mercado e a sociedade civil): antes pode tornar as coisas piores. Mais uma vez, a virtude da prudência pode ajudar-nos a ultrapassar estes problemas. Para além disso, se aceitarmos que não podemos corrigir todas as imperfeições que surgem na vida económica e social recorrendo ao governo, isso aumenta a necessidade de uma prática ética – não apenas nas empresas, mas também na sociedade civil e na vida política.

A prudência não é apenas necessária para fazer juízos de política pública, é também necessária na vida económica. Os proprietários e os gestores das empresas enfrentam frequentemente decisões muito difíceis. Por exemplo, despedir trabalhadores quando as oportunidades de emprego são escassas pode ser catastrófico para as famílias dos trabalhadores afetados. Mas, se o não despedimento desses trabalhadores conduzir à falência da empresa, o impacto nos outros trabalhadores pode ser muito pior. Para dar outro exemplo: como deve uma empresa proceder ao considerar a construção de uma mina que vai fornecer combustível mais barato e numerosos empregos, mas provocar danos na fauna e na flora locais e produzir emissões de carbono?

Em todas as áreas da vida económica e política, precisamos de tomadas de decisão éticas, bem como de um conhecimento técnico que permita tomar decisões prudentes. Esta necessidade foi claramente notada por Bento XVI, enquanto Cardeal Ratzinger:

Torna-se cada vez mais evidente na história económica que o desenvolvimento de sistemas económicos centrados no bem comum depende de um determinado sistema ético, que, por sua vez, só pode nascer e ser sustentado por fortes convicções religiosas. Uma moral que se julga capaz de prescindir do conhecimento técnico das leis económicas não é uma moral, mas moralismo. Como tal, é a antítese da moral. Hoje precisamos do máximo conhecimento económico especializado, mas também do máximo éthos para que o conhecimento económico especializado possa ser posto ao serviço dos objetivos certos. (Ratzinger, 1986: XX).

A autoridade da Doutrina Social da Igreja e a necessidade de diálogo

A prudência, combinada com a humildade, implica muitas vezes admitir que não temos o conhecimento necessário para fazer recomendações sobre uma determinada questão política. Os documentos da Doutrina Social da Igreja são escritos nesse espírito. Fazem parte da doutrina da Igreja, mas esta aceita que não é seu papel fazer declarações definitivas e formais sobre assuntos económicos, sociais e políticos e com o mesmo peso que a sua doutrina sobre questões morais e teológicas. A doutrina da Igreja sobre assuntos económicos, sociais e políticos pode evoluir e até mudar.

Esta forma de pensar foi expressa por João Paulo II na encíclica Centesimus annus (3):

A presente Encíclica visa pôr em evidência a fecundidade dos princípios expressos por Leão XIII, que pertencem ao património doutrinal da Igreja, e, como tais, empenham a autoridade do seu Magistério. Mas a solicitude pastoral levou-me também a propor a análise de alguns acontecimentos da história recente. É supérfluo dizer que a atenta consideração do evoluir dos acontecimentos, para discernir as novas exigências da evangelização, faz parte da tarefa dos pastores. Tal exame, no entanto, não pretende dar juízos definitivos, não fazendo parte, por si, do âmbito específico do Magistério.

Como Rodger Charles afirma no seu livro, Catholic Social Witness and Teaching (Charles, 1988, vol. II, p. 15), a autoridade magisterial das encíclicas aplica-se apenas a questões de princípios morais e suas implicações. Nestas matérias, as encíclicas sociais são vinculativas para a consciência dos membros da Igreja. Já questões práticas e outras do género, de acordo com Charles, podem ser julgadas com base nos argumentos apresentados.

Por conseguinte, é importante para a Igreja Católica alimentar uma tradição intelectual rica que dê origem a novos contributos para o pensamento social Católico que possam, em última instância, refletir-se na sua doutrina. Neste espírito, o Papa Francisco levantou muitas questões nas encíclicas sociais apelando ao diálogo. Ele utiliza a palavra “diálogo” 24 vezes na sua encíclica social sobre o ambiente, Laudato si, e 48 vezes na sua encíclica posterior Fratelli tutti. O objetivo deste livro é contribuir para esse diálogo.

O diálogo pode muitas vezes aproximar as pessoas de forma surpreendente. O diálogo entre pessoas que discordam pode não só ajudá-las a aproximarem-se de um acordo, como também pode ajudá-las a reconhecerem que o seu interlocutor está a abordar o problema a partir de uma posição de boa vontade. Quando as pessoas se apercebem de que aqueles que fazem juízos prudenciais diferentes estão a agir de boa vontade, isso pode contribuir para o desenvolvimento de uma cultura política civilizada e frutífera. O diálogo pode muitas vezes aproximar pessoas que, em questões específicas, têm filosofias bastante diferentes. Para dar apenas um exemplo, são frequentemente aqueles que se situam à esquerda do espectro político e aqueles que mais apoiam o mercado livre que são os defensores mais veementes do direito ao trabalho por parte dos requerentes de asilo e dos refugiados.[2]

Princípios da Doutrina Social da Igreja

Dignidade humana

O quarto capítulo do Compêndio da Doutrina Social da Igreja identifica a promoção da dignidade humana como o primeiro princípio da Doutrina Social da Igreja. Em primeiro lugar, o governo fá-lo protegendo a vida, a propriedade, a paz e o direito à iniciativa económica e assegurando que todos têm acesso a bens e serviços económicos básicos, como alimentação, vestuário, habitação, educação e cuidados de saúde. Garantir que todos têm bens básicos não significa, claro, que estes devam ser fornecidos diretamente pelo governo: normalmente, as pessoas obtêm acesso a bens e serviços através dos rendimentos do seu trabalho ou dos membros da família. Contudo, o estado deve intervir, em nome da dignidade humana, para garantir que, de uma forma ou de outra, todos têm o básico para viver com dignidade.

O bem comum

Outro pilar crucial da Doutrina Social da Igreja é a promoção do bem comum. Isto não é apenas linguagem Católica para “bem-estar geral” ou para “pensar em toda a comunidade e não em si próprio”. De acordo com o documento do Vaticano II, Gaudium et spes, o bem comum compreende “o conjunto das condições de vida social que permitem aos indivíduos, famílias e associações alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição” (74). Por vezes, a citação termina com a palavra “fulfilment” [realização], que é usada na tradução inglesa do documento noutro parágrafo: mas, quando se usa a palavra “realização”, corre-se o perigo de aplicar o significado secular moderno ao termo em vez de compreender o bem comum em toda a sua riqueza, e que implica viver uma vida realizada e virtuosa próxima de Deus.

O bem comum diz respeito ao que é, simultaneamente, “bom” e “comum”. Como tal, engloba aquelas condições que se relacionam com a vida comum de uma determinada sociedade e que são indivisivelmente partilhadas. Ao promover o bem comum, a Igreja Católica promove o papel da família e das relações sociais em oposição ao individualismo atomista; promove as instituições independentes da sociedade civil na educação, no mercado de trabalho e nos cuidados de saúde em oposição a um estado prepotente; promove o direito à iniciativa económica em oposição ao controlo central e ao planeamento da vida económica; e promove a caridade e a justiça em oposição à ganância e ao egoísmo.

Solidariedade e subsidiariedade

A Igreja está consciente de que a necessidade de defender a dignidade de cada ser humano, juntamente com a realidade da imperfeição humana, dá origem à necessidade de governo. Ao mesmo tempo, a Igreja deseja assegurar que o governo serve a pessoa humana e a sociedade e não as domina. Por vezes, estas exigências são consideradas como estando em tensão e esta tensão é frequentemente descrita como envolvendo o equilíbrio dos conceitos de solidariedade e subsidiariedade da Doutrina Social da Igreja. Mas trata-se de uma simplificação potencialmente enganadora.

A solidariedade é uma virtude que implica agir de acordo com uma preocupação profunda pelos outros. A opção preferencial pelos pobres é, evidentemente, um aspeto da virtude da solidariedade. Além disso, desde a encíclica do Papa Paulo VI, Populorum progressio, sobre o desenvolvimento dos povos, quase todos os documentos da Doutrina Social da Igreja sublinharam que os laços de solidariedade ultrapassam as fronteiras nacionais e exigem a concretização de uma fraternidade universal.[3] A solidariedade deve também transcender as gerações. Este é um aspeto que o Papa Francisco enfatizou na encíclica Laudato si, mas que, de facto, também foi introduzido na Populorum progressio:

Herdeiros das gerações passadas e beneficiários do trabalho dos nossos contemporâneos, temos obrigações para com todos, e não podemos desinteressar-nos dos que virão depois de nós aumentar o círculo da família humana. A solidariedade universal é para nós não só um facto e um benefício, mas também um dever. (17)

A solidariedade exige uma ação a todos os níveis da sociedade. A encíclica Sollicitudo rei socialis coloca a questão da seguinte forma:

[A solidariedade] não é um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos. (38)

Tal como acontece com o bem comum, é um erro que empobrece a sociedade assumir que as expressões de solidariedade são apenas responsabilidade do estado: “A solidariedade consiste primariamente em que todos se sintam responsáveis por todos e, por conseguinte, não pode ser delegada só ao Estado” (Caritas in veritate, 38). O Papa Bento XVI explicou numa encíclica anterior por que razão isso acontece: “Um Estado, que queira prover a tudo e tudo açambarque, torna-se no fim de contas uma instância burocrática, que não pode assegurar o essencial de que o homem sofredor – todo o homem – tem necessidade: a amorosa dedicação pessoal.” (Deus caritas est, 28)

De facto, podemos constatar que a virtude da solidariedade está intimamente ligada à virtude do amor. E como poderíamos delegar o amor na ordem política? Contudo, podemos pedir, por amor, que a ordem política seja capaz de desempenhar certas funções.

Já a subsidiariedade explica como e quando o estado deve atuar. O princípio da subsidiariedade ajuda-nos a ver como as diferentes instituições da sociedade têm funções diferentes na promoção do bem comum. Subsidiariedade significa “ajudar”. O estado deve ajudar os indivíduos, as famílias, a comunidade e as associações civis a atingirem os seus objetivos legítimos, sem considerar como suas essas responsabilidades. A solidariedade não pode ser autêntica sem a subsidiariedade devido à necessidade de uma verdadeira fraternidade na prestação de assistência aos mais desfavorecidos. Esta não pode ser simplesmente assegurada por uma burocracia estatal, como afirmaram os próprios Papas.

Uma compreensão adequada da subsidiariedade tem muitas implicações políticas diretas. O princípio da subsidiariedade é explicado de forma eficaz em relação à saúde e à educação nos capítulos de Russell Sparkes e Leonardo Franchi, respetivamente. No caso da educação, a Igreja Católica ensina que o estado existe para providenciar o enquadramento a partir do qual os pais, incluindo os pais Católicos, podem obter a educação que desejam para os seus filhos. O estado existe para ajudar as famílias a obterem educação para os seus filhos, pelo que a mensagem implícita – e por vezes explícita – da doutrina da Igreja neste domínio é a de que o estado deve providenciar o mesmo apoio que é dado às escolas públicas aos pais que querem que os seus filhos sejam educados numa escola privada ou da Igreja. Por outras palavras, os pais e a família devem estar no centro da tomada de decisão, juntamente com a escola e, possivelmente, a comunidade paroquial. Isto também poderia levar a uma aplicação efetiva do princípio da solidariedade a todos os níveis, com o estado a garantir que todos possam ter acesso à educação. Ao mesmo tempo, a família, a escola, a paróquia e a Igreja alargada proporcionam um ambiente de amor para a formação intelectual das crianças. O princípio da subsidiariedade é aplicado na medida em que os pais são ajudados a obter uma educação de acordo com a sua consciência, enquanto a sua autonomia é respeitada. Russell Sparkes aborda a questão de saber se deveríamos aplicar princípios semelhantes aos cuidados de saúde no Reino Unido, talvez tirando lições da forma como os cuidados de saúde são atualmente prestados em países como a Alemanha.

Justiça Social

A justiça social é também uma virtude que está no centro da Doutrina Social da Igreja. A utilização desta expressão pode criar mais calor do que luz entre as pessoas que abordam a tradição a partir de filosofias políticas diferentes, devido aos debates suscitados por Hayek em The Mirage of Social Justice (Hayek, 1976). Contudo, a justiça social na Doutrina Social da Igreja é um conceito completamente diferente do discutido por Hayek.

Na Doutrina Social da Igreja, a justiça social é a forma de justiça pela qual todos os indivíduos e instituições da sociedade orientam a sua conduta para a promoção do bem comum da comunidade.[4] Tem sido designada, por vezes, como “justiça do bem comum”. É um tipo de justiça diferente da justiça comutativa, segundo a qual recebemos os direitos estabelecidos em obrigações contratuais; mas também difere da justiça distributiva, na medida em que esta descreve os princípios segundo os quais os bens do mundo devem ser distribuídos.

Um exemplo atual do domínio da justiça social será o da discriminação. Por exemplo, uma entidade patronal que decida não contratar um trabalhador do sexo masculino por ser negro estaria a violar a justiça social. A entidade patronal não estaria, provavelmente, a ofender a justiça comutativa porque não há quebra de contrato; poderá até nem haver violação da justiça distributiva se o candidato conseguir encontrar emprego noutra empresa com o mesmo salário (o que, num mercado de trabalho eficiente, seria possível). Mas o ato de discriminação prejudica o bem comum: torna a sociedade menos perfeita e mina a vida em comum da sociedade.

A conjuntura económica: uma análise prudencial

Muitas encíclicas sociais começam por discutir aquilo a que se pode chamar conjuntura económica e política. Vale a pena examinar esse aspeto aqui. É justo dizer que os autores dos capítulos deste livro são geralmente mais otimistas acerca das últimas décadas do que os documentos oficiais da Doutrina Social da Igreja.

Nas comunicações da Igreja Católica discute-se muito a necessidade de novos modelos económicos que reduzam a desigualdade, aumentem a segurança económica e assegurem uma redução contínua da pobreza. Um objetivo importante deste livro é contribuir para o debate sobre os modelos económicos na perspetiva do pensamento social Católico e da Doutrina Social da Igreja. E isso é feito no contexto das tendências económicas e culturais do final do século XX e início do século XXI. Estas tendências incluem um desenvolvimento significativo do fenómeno da globalização, pelo menos até ao início da segunda década do século XXI, uma melhoria em muitos aspetos da governação em partes substanciais do mundo e uma redução das guerras. Algumas destas tendências favoráveis estavam a abrandar ou a inverter-se no momento em que a crise da Covid chegou em 2020, nomeadamente com o aumento das medidas protecionistas provenientes de várias fontes, incluindo dos Estados Unidos. E no momento em que estamos a escrever, a invasão russa da Ucrânia continua.

O Papa Francisco sugeriu que a desigualdade é a raiz dos males sociais na encíclica Evangelii gaudium (202) e que a desigualdade estava a tornar-se cada vez mais evidente (52). O Papa Bento XVI sugeriu que a desigualdade estava a aumentar na Caritas in veritate (32). A carta do Vaticano, de 2018,[5] sobre o sistema financeiro exprimiu sentimentos semelhantes. De facto, diz-se ou insinua-se frequentemente que a pobreza extrema está a aumentar e que a globalização não conseguiu reduzir a pobreza e pode levá-la a aumentar (Caritas in veritate, 42). Estas questões são importantes. O bem comum não será alcançado até que todos tenham bens materiais e serviços suficientes para viver uma vida digna. Ao mesmo tempo, é importante reconhecer o enorme progresso que foi feito ao longo dos últimos 30 anos. Se não o fizermos, corremos o risco de fazer juízos políticos imprudentes e rejeitar as políticas que conduziram a essas conquistas.

Vale a pena analisar a evolução recente do bem-estar económico, considerando a Tabela 1.

Tabela 1: Medidas selecionadas de bem-estar: do final do século XX até à Covid[6]

1980
(exceto quando indicado)
2000
(exceto quando indicado)
2019
(exceto quando indicado)
Coeficiente de Gini para os rendimentos nacionais (mais elevado significa mais desigual)0.8 (1988)0.72 (2003)0.65 (2013)
Taxa de alfabetização68%81%86%
Taxa de mortalidade materna por 100 mil nados vivos385 (1990)341216 (2015)
Percentagem da população mundial em situação de pobreza extrema42.6%27.8%9.3%
Défice alimentar por quilocalorias por pessoa[7]172 (1990)13588 (2016)
Taxas de mortalidade por poluição atmosférica por 100 mil pessoas, normalizadas por idade111.3 (1990)9464 (2017)

Estes dados sugerem melhorias impressionantes em medidas básicas de bem-estar humano e tais melhorias não têm precedentes na história da humanidade. Estes dados não foram escolhidos a dedo: são realmente representativos. A queda na desigualdade global é especialmente notável: se uma queda de magnitude semelhante ocorresse num único país – os Estados Unidos (que é genericamente considerado um país desigual) –, ele tornar-se-ia o país desenvolvido mais igualitário do mundo. É claro que isto não significa que a desigualdade não esteja a tornar-se mais evidente: pode estar a diminuir ao mesmo tempo que se torna mais visível. As encíclicas sociais não estão necessariamente erradas quando afirmam que a desigualdade é cada vez mais evidente.

O período que se seguiu a 1980 foi único em muitos aspetos. É o primeiro período da história da humanidade em que o número de pessoas a viver em situação de pobreza extrema diminuiu de forma significativa. Até 1980, a proporção de pessoas a viver na pobreza tinha diminuído tão lentamente que o número de pessoas a viver na pobreza continuou a crescer. De facto, é razoável dizer que, apesar dos desafios que subsistem, foram feitos mais progressos na redução da pobreza extrema entre 1980 e 2020 do que durante toda a história económica anterior em conjunto. Para além disso, o período decorrido desde 1980 constituiu a primeira vez na história que a desigualdade global diminuiu de forma sustentada. Diminuiu porque um grande número de pessoas que anteriormente ganhava abaixo do limiar de pobreza absoluta passou para a classe média global, enquanto os rendimentos nos países mais ricos cresceram muito lentamente ou não cresceram de todo. Considerando a perspetiva global da Igreja Católica, este facto deve ser celebrado. Como se pode ver nas estatísticas relativas à subnutrição, o número muito menor de pessoas em situação de pobreza extrema também tem uma diferença menor entre as necessidades alimentares diárias e a quantidade de alimentos que tem disponível para comer.

A Covid, por si só, não alterou drasticamente este quadro. De facto, em alguns aspetos, a Covid atingiu muito mais os países ricos do que os países mais pobres. Para além disso, em muitos países, a natureza das medidas de emergência que foram postas em prática foi tal que a desigualdade diminuiu durante a pandemia. É importante notar, contudo, que os pobres têm uma almofada de rendimento mais pequena do que os mais abastados, pelo que, quando uma crise chega, ela empurra os pobres ainda mais para a pobreza absoluta. Assim, em termos absolutos, os ricos podem ter sido os mais afetados; mas, para aqueles que se encontram imediatamente acima ou abaixo do limiar de pobreza, o impacto terá sido mais dramático. Naturalmente, uma das razões pelas quais devemos tentar compreender as condições económicas e políticas adequadas para o desenvolvimento económico é aumentar a resistência dos pobres quando há uma crise.

Deveria ser motivo de grande preocupação o facto de algumas das condições que conduziram à diminuição da desigualdade e da pobreza estarem agora a inverter-se: as guerras estão a aumentar, alguns indicadores de governação estão a deteriorar-se e a globalização parece estar a regredir. E dados recentes sugerem que alguns dos indicadores globais que melhoraram nas últimas décadas estão agora em retrocesso.

Apesar disso, é interessante o facto de tantos comentadores, bem como a própria Igreja em documentos oficiais, se concentrarem nas más notícias. Uma razão para isso é que as boas notícias são normais e raramente são abordadas nos meios de comunicação. Para além disso, o filósofo ateu Stephen Pinker escreveu sobre a “psicologia da moralização”, segundo a qual as pessoas competem por autoridade moral.[8] Aqueles que defendem que o mundo está a melhorar podem parecer indiferentes.

Pinker pode estar certo quanto à razão pela qual as pessoas têm relutância em sugerir que a posição dos pobres está a melhorar. Mas existem, evidentemente, muitos problemas que persistem no mundo, e alguns estão a aumentar. O Papa Francisco e outros líderes religiosos estão genuinamente preocupados com problemas como o tráfico de seres humanos, a escravatura moderna, os desafios ambientais, o tratamento dos prisioneiros, a solidão, as tensões geopolíticas em algumas partes do mundo, bem como as grandes bolsas de pobreza que ainda subsistem e que agora parecem estar a aumentar. Esta preocupação moral pode levar-nos a agir. Não há nada de errado com o uso da hipérbole para encorajar os crentes. Para além disso, o bem comum exige uma luta contínua por uma vida comum melhor e melhores condições materiais para os necessitados. Por isso, é compreensível que a Doutrina Social da Igreja se concentre nos problemas. Estamos muito longe de alcançar, nas palavras de Papas recentes, “uma fraternidade universal dos homens” – algo que exige mais do que progresso económico. E estamos agora a retroceder com o crescimento dos populismos e dos conflitos. Ao mesmo tempo, a virtude da prudência exige que nos detenhamos a analisar os progressos registados nas últimas décadas e a tentar compreender as suas causas.

Uma análise prudente não deve limitar-se a medir as condições atuais. No que diz respeito ao ambiente, por exemplo, é verdade que, apesar da diminuição do número de mortes causadas por poluição e catástrofes naturais, os efeitos das alterações climáticas podem agravar-se no futuro em consequência dos nossos atuais estilos de vida. Outros indicadores ambientais também se degradaram, o que pode vir a causar problemas a longo prazo.

Um outro aspeto da conjuntura atual está relacionado com o ambiente político-económico em que a globalização teve lugar. Nos últimos 40 anos, em muitos países ocidentais, foram removidos muitos controlos diretos sobre a atividade económica. Esses controlos envolviam a regulação de preços e rendimentos, bem como do câmbio e investimento estrangeiro. Este processo foi parcialmente facilitado pela União Europeia, nomeadamente através do programa do mercado único. Contudo, em muitas áreas, como as finanças, o mercado de trabalho e a educação, tem havido um enorme crescimento da regulação estatal. Poder-se-ia dizer que são permitidas mais coisas (devido à remoção dos controlos diretos), mas que as coisas que são permitidas estão mais fortemente reguladas.

A par destas tendências, assistimos a uma transferência da responsabilidade pela regulação de profissões e outros organismos independentes para agências de regulação estatais. E à medida que o papel dos sindicados nas negociações do mercado de trabalho foi diminuindo, a regulação estatal desse mercado foi aumentando. De um modo geral, parece ter havido uma transferência da autoridade para a regulação da vida económica da sociedade civil e das instituições do mercado, incluindo as profissões e os sindicados, para o estado. Ao mesmo tempo, nos últimos 25 anos, a despesa pública aumentou em proporção do rendimento nacional na maioria dos países do G7 (a Alemanha e o Canadá são as únicas exceções).

Estas tendências podem ser consideradas contrárias ao princípio da subsidiariedade. A Doutrina Social da Igreja é favorável à regulação da atividade económica, mas sugere regularmente que os organismos não estatais devem assumir a responsabilidade primária neste domínio. Na encíclica Caritas in veritate (39), o Papa Bento XVI escreveu sobre como um modelo cada vez mais binário de “mercado-mais-estado” é corrosivo para a sociedade, enquanto outras formas de solidariedade, que têm a sua origem na sociedade civil, edificam-na. Em suma, os autores deste livro adotam a perspetiva de que o estado excluiu a sociedade civil, embora as instituições da sociedade civil envolvidas na regulação económica emerjam do mercado e ajudem a civilizá-lo. Nem toda a gente concorda com esta análise. Contudo, há um consenso alargado entre os pensadores Católicos quanto ao facto de a sociedade civil ter sofrido uma erosão e necessitar de ser reanimada – ou de que se deve permitir que ela reanime.

Ligar a teoria à prática: um resumo do livro

Os autores deste livro regressam aos fundamentos do pensamento social Católico ao mesmo tempo que discutem os seus temas num contexto prático. Eles examinam como devemos pensar sobre migração, ambiente, finanças, cuidados de saúde, dívida pública, impostos, educação e ética empresarial, baseando-se na tradição do pensamento social Católico e da Doutrina Social da Igreja. Como já foi referido, eles concluem, em grande medida, que a sociedade civil deve desempenhar um papel mais relevante e o estado um papel mais reduzido; que a ética é essencial para o desenvolvimento de uma cultura empresarial saudável e não pode ser substituída por regulação; que o desenvolvimento de uma sociedade ética tem de ser reforçado por um sistema educativo baseado em valores religiosos, com as escolas religiosas livres da interferência estatal; e que os cuidados de saúde não devem ser um monopólio do estado mas, pelo contrário, devem incluir muito serviços prestados por instituições Católicas. Estas conclusões não decorrem de novos modelos económicos segundo as orientações que o Papa nos pediu para investigar, mas derivam de uma aplicação prática da tradição da Doutrina Social da Igreja a problemas políticos prementes.

O livro começa com um capítulo de André Azevedo Alves, Hugo Chelo e Inês Gregório, que explora a tradição do pensamento social Católico desde S. Tomás de Aquino até à escolástica tardia e a sua influência nas primeiras encíclicas sociais. O capítulo examina também o pensamento social Católico e a Doutrina Social da Igreja sobre salários justos e propriedade privada num contexto tomista.

Os escolásticos tardios desenvolveram o pensamento social Católico num período de rápidas mudanças económicas e sociais e de globalização. O capítulo seguinte, da autoria de Philip Booth, examina, nesse sentido, o fenómeno da globalização. A própria Igreja é universal e considera os direitos humanos como universais e indivisíveis. Isto fornece uma justificação para o direito e a governação internacionais, que são discutidos neste capítulo. O objetivo de uma fraternidade universal dos homens exige que não vejamos o mundo apenas através das lentes de estados-nação individuais.

Esta visão internacional mais alargada deve também influenciar o modo como abordamos o tema da migração. Andrew Yuengert aborda este assunto complexo, sobre o qual o Papa Francisco se pronunciou em várias ocasiões. Yuengert concorda que devemos ser solidários com aqueles que procuram migrar. Contudo, destaca que, para além dos imigrantes, são os os detentores de capital relativamente abastados que beneficiam da imigração. Se há perdedores, é provável que sejam os nativos pobres. Yuengert defende que a Doutrina Social da Igreja deve ter em conta as suas preocupações mesmo que se conclua que as fronteiras devem permanecer abertas ou tornar-se mais abertas à imigração.

O capítulo seguinte trata também de um tema que está no coração do Papa Francisco: o ambiente. Philip Booth situa Laudato si, a encíclica do Papa Francisco sobre ecologia, na tradição mais ampla da doutrina da Igreja e enfatiza a importância do tema para os Cristãos. O autor também responde ao apelo do Papa Francisco ao diálogo, argumentando que o pensamento social Católico pode unir a nossa preocupação de longa data com o ambiente à doutrina positiva tradicional da Igreja sobre o papel da propriedade privada. A importância da boa governação e da paz para os resultados ambientais é também discutida. Finalmente, a gestão comunitária dos recursos naturais, que, de forma surpreendente, foi omitida na Laudato si, é apresentada como uma forma frutuosa de gerir o ambiente natural em muitos contextos.

Seguem-se três capítulos que discutem diretamente o papel das empresas. Martin Schlag discute a forma como o bem comum deve ter sempre prioridade sobre o interesse individual nas decisões empresariais. Ao mesmo tempo, a Igreja vê os negócios de forma positiva – de facto, como uma “vocação nobre” nas palavras do Papa Francisco. Dada a importância das empresas na vida económica e social, estas devem ser conduzidas de forma ética em todos os momentos. Jay Richards recorda-nos que o governo também deve ser conduzido eticamente. O autor discute o problema do “capitalismo clientelista ou de compadrio”, em que elementos do governo e das empresas perseguem os seus próprios interesses de modo corrupto ou através de lobbies, prejudicando seriamente o bem comum. Richards manifesta preocupação pelo facto de a doutrina da Igreja não ter compreendido plenamente o problema do clientelismo e de algumas políticas económicas específicas propostas nos documentos da Igreja poderem, na realidade, encorajá-lo. Segue-se um curto capítulo de Martin Schlag que examina as raízes bíblicas e patrísticas da Doutrina Social da Igreja acerca da atividade empresarial.

Os três capítulos seguintes centram-se em questões que causam grande controvérsia entre os Cristãos. Robert Kennedy debruça-se sobre a questão da tributação. Diz-se frequentemente que a moderna Doutrina Social da Igreja começou em 1891 com a publicação de Rerum novarum. Nessa altura, após 1900 anos de história da Igreja, os impostos representavam apenas cerca de 10 por cento do rendimento nacional; hoje representam entre 35 e 50 por cento do rendimento nacional nos países desenvolvidos. É verdade que a natureza do governo mudou radicalmente, mas Kennedy argumenta que a visão e a tradição da Igreja ainda nos podem ajudar a compreender o papel do governo e dos impostos numa sociedade boa. O capítulo seguinte, escrito por Philip Booth, Steve Nakrosis e Kaetana Numa, analisa os problemas que são causados quando os governos optam por financiar a sua despesa através de empréstimos em vez de impostos. Os autores estabelecem um paralelo com a preocupação do Papa Francisco com a justiça intergeracional expressa na encíclica Laudato si. Samuel Gregg considera, em seguida, o setor financeiro e a Doutrina Social da Igreja. Há muito que este é um tópico controverso e o autor analisa o modo como a doutrina da Igreja sobre a usura tem evoluído. Examina igualmente a história do envolvimento da Igreja com questões morais e práticas decorrentes do setor financeiro e sugere que a Igreja Católica pode aprender com esta história e, assim, sair das margens dos debates modernos.

Concluímos com dois capítulos sobre temas não menos polémicos. Russell Sparkes escreve sobre cuidados de saúde e Leonardo Franchi discute a educação. É interessante notar como os governos têm abordado a prestação destes dois serviços de forma diferente. Em Inglaterra e no País de Gales, embora no âmbito de um sistema altamente regulado, a Igreja Católica conseguiu estabelecer escolas que não são objeto de discriminação quanto ao seu financiamento em comparação com as escolas estatais. O mesmo se aplica às universidades, embora só existam três universidades Católicas na Grã-Bretanha.[9] Por outro lado, os cuidados de saúde são totalmente financiados e prestados pelo estado a menos que os doentes queiram pagar a totalidade dos custos para além dos impostos que já pagaram para financiar a prestação estatal. A Alemanha tem um sistema de saúde que é bastante semelhante ao sistema escolar britânico: permite que as pessoas escolham entre uma série de prestadores, incluindo prestadores Cristãos, financiados de forma semelhante. Sparkes defende, por razões éticas e de desempenho, um sistema de saúde no Reino Unido que seja mais parecido com o da Alemanha. As decisões relacionadas com a prestação de cuidados de saúde envolvem frequentemente questões éticas e, por isso, é defendido que a Igreja deve estar envolvida na sua provisão. Isto implicaria uma revisão do acordo de pós-guerra, que é, de facto, invulgar no mundo ocidental.

Franchi apresenta observações semelhantes sobre a importância da autonomia das escolas Católicas, apesar de as estruturas básicas do acordo de pós-guerra serem menos suscetíveis de discussão. Recordando a doutrina da Igreja Católica, reitera que os pais são os principais educadores das crianças, cabendo aos professores assistir os pais nesse papel. As escolas, defende Franchi, devem ser autorizadas a variar o seu currículo em vez de ser imposto pelo estado. É igualmente importante que os pais possam exercer a sua consciência e escolher uma escola que seja adequada para os seus filhos. Isto exige que se resista às tentativas de discriminar as escolas Católicas no que diz respeito tanto ao financiamento e como ao reforço do controlo sobre as suas políticas de admissão ou currículos. Existindo tais discriminações ou controlos, devem ser revertidos.

Terminamos o livro com um capítulo sobre as fontes da Doutrina Social da Igreja e, no final, apresentamos uma lista completa dos documentos da Igreja referidos ao longo da obra.

Conclusão

Os autores oferecem um contributo importante para a reflexão sobre como a Doutrina Social da Igreja pode enfrentar os desafios contemporâneos. É necessária uma renovação da cultura Cristã nos negócios e na sociedade civil, bem como um renascimento da participação das instituições, movimentos, associações e indivíduos Católicos na educação e nos cuidados de saúde. Como já foi referido, os autores concordam com os pensadores que, no campo do pensamento social Católico, acreditam que é necessária uma renovação da sociedade civil. No essencial, a ênfase dos autores deste livro seria colocada no facto de o governo permitir que a sociedade civil prospere para que possa haver também uma renovação da cultura na economia de mercado. Os autores subscrevem a ideia do Papa Francisco de que a atividade comercial é uma vocação nobre, mas, no essencial, iriam mais longe ao sublinhar os benefícios de uma economia empresarial bem ordenada e a importância da globalização na promoção da prosperidade e na redução da desigualdade global. Ao mesmo tempo, muitos autores destacam a necessidade de ética no mundo empresarial – incluindo na sua relação com o estado. Mais uma vez, estas são preocupações do Papa Francisco.

Há, naturalmente, tópicos que não constam deste livro – talvez devam ser desenvolvidos mais tarde. Não há uma abordagem sustentada das alterações climáticas, da ajuda ao desenvolvimento ou da prestação de assistência social, por exemplo. Considerando as tendências atuais e os desafios políticos, há também espaço para uma reafirmação moderna da importância da família e da sua relação com as políticas públicas. Por outro lado, a redação e a edição deste livro levaram-nos a identificar lacunas menos óbvias, que requerem um tratamento mais sistemático por parte da Doutrina Social da Igreja. Estas lacunas incluem a ética na vida política e cívica. Os católicos escrevem e falam muito sobre a ética nos negócios, mas fazem-no menos sobre a ética na vida pública. Outro assunto que merece um tratamento mais sistemático é o dos “mercados ilegais”: como devemos lidar com a prostituição, as drogas e o tráfico de seres humanos na arena das políticas públicas? S. Tomás de Aquino debruçou-se sobre o tema da prostituição há 800 anos; nós devemos refletir sobre estes problemas no contexto moderno.

Haverá sempre mais a dizer, tanto sobre os tópicos abordados como sobre as questões não discutidas. Contudo, não há dúvida de que os autores deste livro dão um contributo importante para o pensamento social Católico aplicado às políticas públicas no contexto das tendências globais do final do século XX e do início do século XXI.

Referências

Alves, A. A. e Booth, P. M., (2022), Virtues, Vices and the Responsibilities of Business: An Application of Catholic Social Teaching to the Problems of Corruption and Lobbying, Religions, 13, 1070. https://doi.org/10.3390/rel13111070

Booth P. M. (2021), “A Catholic Understanding of Economics”, in Franchi L., Convery R., Valero J. (ed), Reclaiming the Piazza III: Catholic Culture and the New Evangelisation, Leominster: Gracewing.

Booth, P. M. e Petersen, M. (2020), Catholic Social Teaching and Hayek’s Critique of Social Justice, Logos: A Journal of Catholic Thought and Culture, 23(1): 36-64.

Catholic Church (1994), Catechism of the Catholic Church, London: Geoffrey Chapman.

Charles, R. (1998), Christian Social Witness and Teaching, Leominster: Gracewing.

Finn D. (2011), Nine Libertarian Heresies Tempting Neoconservative Catholics to Stray from Catholic Social Thought, Journal of Morality and the Market, 14(2),

487-503.

Hayek F. A. (1976), The Mirage of social Justice, Chicago: University of Chicago Press.

Mueller J. D. (2011), Finn’s “Nine Libertarian Heresies” and Mueller’s First Lemma Economists Complain Exactly Insofar as They Are Unable to Explain, Journal of Morality and the Market, 14(2), 519-533.

Pontifical Council for Justice and Peace (2005), Compendium of the Social Doctrine of the Church, London: Burns & Oates.

Ratzinger, J. (1986), ‘Church and economy: responsibility for the future of the world economy’, Communio, 13: 199–204.

Encíclicas papais e outros documentos da Igreja referidos nesta secção

Francisco, 2020, Fratelli tutti, carta encíclica: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html

Francisco, 2015, Laudato si, carta encíclica: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html

Francisco, 2013, Evangelii gaudium, exortação apostólica: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.html

Pontifício Conselho «Justiça e Paz» (2011), Para uma reforma do sistema financeiro e monetário internacional na perspetiva de uma autoridade pública de competência universal: https://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/documents/rc_pc_justpeace_doc_20111024_nota_po.html

Bento XVI, 2009, Caritas in veritate, carta encíclica: https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate.html

Bento XVI, 2005, Deus Caritas est, carta encíclica: https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20051225_deus-caritas-est.html

João Paulo II, 1991, Centesimus annus, carta encíclica: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_01051991_centesimus-annus.html

João Paulo II, 1987, Sollicitudo rei socialis, carta encíclica: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_30121987_sollicitudo-rei-socialis.html

Paulo VI, 1967, Populorum progressio, carta encíclica: https://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/encyclicals/documents/hf_p-vi_enc_26031967_populorum.html

Vaticano II, Gaudium et spes, 1965, Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo Atual: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html

Leão XIII, 1891, Rerum novarum, carta encíclica: https://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html

Questões para discussão

  1. Por que razão é a virtude da prudência importante para pensar como devem ser abordados os desafios das políticas públicas?
  2. A desigualdade e a pobreza a nível mundial diminuíram substancialmente. Até que ponto isso deve ser motivo de celebração?
  3. Em que medida é que, na prática, os princípios da solidariedade e da subsidiariedade estão em conflito?
  4. De que forma as empresas contribuem para o bem comum e de que forma o prejudicam?
  5. Em que medida é que as políticas de saúde e de educação seguem os princípios da solidariedade e da subsidiariedade no seu país?
  6. De que forma a discriminação racial prejudica a justiça social?

Notas de rodapé

[1] Identificado como “Catholic Church (1994)” na lista bibliográfica.

[2] Este debate entre Ronald Reagan e George Bush, em 1980, pode surpreender alguns leitores. Este excerto é sobre migração e tem 2 minutos e 50 segundos de duração: https://www.youtube.com/watch?v=YsmgPp_nlok.

[3] É claro que este tema não esteve ausente em documentos anteriores.

[4] Ver Booth e Petersen (2020) para um debate mais aprofundado.

[5] Congregação para a Doutrina da Fé e Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral (2018), Oeconomicae et pecuniariae quaestiones (Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspetos do atual sistema económico-financeiro):

https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20180106_oeconomicae-et-pecuniariae_po.html

[6] Os dados desta tabela provêm da plataforma Our World in Data e da OCDE.

[7] Este indicador mede o número médio de calorias necessárias para garantir que todas as pessoas subnutridas tenham alimentos suficientes. É um indicador da situação em que as pessoas se encontram em situação de pobreza extrema.

[8] Cf. https://www.cato.org/sites/cato.org/files/pubs/pdf/catosletterv13n1.pdf.

[9] Existe também uma universidade inter-denominacional (anglicana/católica).

 

Sobre os autores

André Alves é Diretor do Centro de Investigação do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa. Desde 2024 é também Honorary Professor of Political Science and Catholic Social Thought na St. Mary’s University, em Londres, onde integra também o Benedict XVI Centre for the Study of Religion and Society. É co-autor do livro The Salamanca School.

Philip Booth é Professor de Finanças, Políticas Públicas e Ética na Universidade de St. Mary’s, Twickenham. É também o Diretor da Missão Católica em St. Mary’s e é o Diretor de Política e Investigação da Conferência dos Bispos Católicos de Inglaterra e do País de Gales. Ocupou anteriormente posições na Universidade de Buckingham, no Institute of Economic Affairs, na Cass Business School e no Banco de Inglaterra. É ainda Professor na Faculdade de Direito da Universidade de Notre Dame, Austrália. Philip é membro da Royal Statistical Society e membro do Institute of Actuaries.

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Foto de: lil artsy

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