Introdução
Nigel Lawson, um antigo Chanceler do Tesouro, declarou em 1992: “O Serviço Nacional de Saúde é a coisa mais próxima que os ingleses têm de uma religião, com aqueles que nele trabalham a encarar essa prática como um sacerdócio”. Trinta anos depois, pouco parece ter mudado e o National Health Service (NHS)[1] continua um dogma inquestionável dos meios de comunicação britânicos e da classe política britânica. É notável como, durante as eleições gerais de dezembro de 2019, todos os partidos políticos prestaram reverência a este assunto totémico, jurando que o NHS só estaria seguro nas suas mãos e prometendo aumentos maciços de despesa para esta já enorme instituição burocrática.
O objetivo deste capítulo é questionar este dogma e esboçar uma forma de repensar a providência social. A tónica será colocada nos cuidados de saúde, o que parece relevante considerando a pandemia. É também uma área onde podem ser feitas comparações internacionais. O capítulo argumentará que o atual sistema de providência social do Reino Unido, altamente centralizado e burocrático, não é, como geralmente se afirma, um epítome da Doutrina Social Católica, mas, na verdade, contrário a ela. Ilustraremos brevemente como a providência social funcionava na prática durante a Idade Média, combinando com uma descrição de como chegamos à situação atual no Reino Unido. Por último, a conclusão analisa a possibilidade de reavivar a hierarquia de valores como presumida por Newman e recentemente retomada por Alasdair MacIntyre.
Saúde e providência social no Reino Unido
A primeira questão que será considerada é a de saber se, mesmo nos termos puramente instrumentais em que estas questões são normalmente discutidas, o modelo centralizado de cuidados de saúde do Reino Unido é tão bom como é frequentemente defendido. As previsões de despesa do governo britânico para o ano fiscal até março de 2024 são apresentadas na Tabela 1. A despesa total inclui categorias que não constam da lista e que perfazem os restantes 31% da despesa pública, compreendendo categorias como juros da dívida e transportes.
Tabela 1: Despesas públicas planeadas no Reino Unido para 2023-24
Programa | Custo (em mil milhões de libras) | % do Total |
---|---|---|
Pensões públicas | 204 | 18 |
NHS (Serviço Nacional de Saúde) | 221 | 19 |
Segurança Social | 162 | 14 |
Educação | 109 | 9 |
Defesa | 80 | 5 |
Segurança Interna | 44 | 4 |
Total | 1,145 |
A maioria dos governos do passado teria ficado espantada com o facto de a defesa e a polícia, as funções centrais do governo para garantir segurança interna e externa, representarem menos de 10% do total das despesas públicas do Reino Unido. Pode ser defendido que o monopólio governamental da providência social e da educação, sustentado por níveis de despesa muito elevados, pode conduzir a uma espécie de “monocultura sistémica”, em que a única coisa que interessa é cumprir o último conjunto de normas do governo, enquanto os valores subjacentes são negligenciados. Um bom exemplo disto é o modo como os hospitais transformaram os jardins em parques de estacionamento lucrativos, quando todas as provas sugerem que a presença de um jardim tem um impacto positivo significativo e um valor terapêutico que tende a ser negligenciado no sistema atual.
No Reino Unido, a prestação de cuidados de saúde é, essencialmente, um monopólio do NHS. O NHS é uma agência governamental que é um dos maiores empregadores do mundo, com 1,4 milhões de funcionários, e é frequentemente declarado como o melhor sistema de saúde do mundo. É verdade que uma pesquisa levada a cabo em 2017 pelo Commonwealth Fund, um think tank norte-americano, colocou o NHS no primeiro lugar em comparação com outras 11 economias principais. A pesquisa do Commonwealth Fund baseou-se em cinco categorias, como sistemas de rastreio, rapidez de acesso e acesso equitativo ignorando o rendimento, mas o NHS teve um mau desempenho em “resultados” como taxas de sobrevivência ao cancro. Uma vez que se pode considerar que o tratamento bem-sucedido das principais doenças é o principal objetivo dos cuidados de saúde, a relevância de um estudo como o da Commonwealth Fund, que atribui apenas 20% da sua metodologia aos resultados, é questionável. A título de exemplo, e usando a metodologia deste estudo, um sistema que desse o mesmo acesso a todas as pessoas mesmo que a um nível muito baixo de cuidados de saúde seria melhor do que um sistema que proporcionasse um nível muito mais elevado de cuidados de saúde a toda a gente, mas em que algumas pessoas pudessem ter acesso a padrões ainda mais elevados.
O King’s Fund é uma organização de caridade independente que trabalha para melhorar a saúde e os cuidados em Inglaterra. Em maio de 2018 elaborou um relatório detalhado que analisava os dados de saúde de 21 países da OCDE, e afirmava que o NHS continuava a ficar atrás de outros países comparáveis. Em particular, notava que o Reino Unido tinha aproximadamente os números per capita mais baixos de médicos, enfermeiros e camas de hospital da OCDE. Concluía:
Embora ninguém defenda que o Reino Unido deva tomar decisões acerca dos cuidados de saúde apenas com base nestas comparações internacionais, a consistência com que o Reino Unido fica aquém dos recursos de cuidados de saúde de outros países é impressionante. A insatisfação com o NHS está atualmente no seu nível mais elevado desde 2007.[2]
De facto, estudos revistos por pares sobre as taxas de sobrevivência ao cancro mostram que a Inglaterra e o País de Gales estão muito atrasados em relação ao resto da Europa. Ocupam, geralmente, o 19.º ou o 20.º lugar entre 29 países, com taxas de sobrevivência ao cancro do pulmão tão baixas que estão no fundo da lista, apenas acima da Bulgária. Em setembro de 2019, a revista médica The Lancet publicou um estudo, baseado em investigações realizadas durante 20 anos pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em cerca de quatro milhões de doentes de sete economias importantes. O estudo revelou que os doentes britânicos apresentavam as taxas de sobrevivência mais baixas para cinco dos sete tipos de cancro mais comuns. A Grã-Bretanha ficou em último lugar no que diz respeito a cancro do intestino, pulmão, estômago, pâncreas e reto; em penúltimo lugar no que se refere à doença no esófago; e em antepenúltimo lugar quanto a cancro do ovário. Para além disso, embora todos os países tenham registado melhorias absolutas nas taxas de sobrevivência desde a década de 1990, a posição relativa do Reino Unido era significativamente pior do que no início do estudo, quando ocupava o último lugar em três dos sete tipos de cancro.
Há cem anos, o sociólogo Max Weber argumentou que as burocracias têm tendência para seguir as suas próprias agendas de autopreservação e expansão, ignorando crescentemente o propósito para o qual foram originalmente criadas de ajudar os outros. Será que o NHS se enquadra na crítica de Weber? Em dezembro de 2019, a OCDE elaborou um estudo internacional que revelava que os médicos britânicos de clínica geral ganham agora mais do que o triplo do que o trabalhador médio no Reino Unido, pelo que o rácio entre o salário dos médicos e o salário médio no Reino Unido é um dos mais elevados do mundo. No entanto, os pacientes estão cada vez mais insatisfeitos com o tempo que lhes é concedido para as consultas, com o Reino Unido a ficar na metade inferior da tabela de classificação. O estudo revelou também que o Reino Unido tem o segundo menor número de médicos da Europa considerando a sua população: 2,8 médicos por 1000 pessoas, em comparação com a média da OCDE de 3,5 médicos por 1000 habitantes.[3]
Há também provas de uma fraca responsabilização no sistema. Por exemplo, durante vários anos houve queixas públicas de alegados maus cuidados nas unidades de maternidade de Shrewsbury e Telford Trust, tendo o Secretário de Estado da Saúde ordenado um inquérito em 2017, na sequência de preocupações levantadas com a morte de bebés. No entanto, o Trust foi premiado com 1 milhão de libras pela NHS Resolution por bons cuidados de maternidade em setembro de 2018. Poucas semanas depois deste prémio, o regulador independente, a Care Quality Commission (CQC), classificou os cuidados de maternidade do Trust como “inadequados” e, em dezembro de 2019, a CQC comunicou que os serviços da unidade liderada por parteiras do Royal Shrewsbury Hospital foram suspensos.[4]
O NHS e a pandemia de Covid-19
Nesta secção, discutiremos brevemente o desempenho do Reino Unido na resposta à pandemia de Covid-19 em comparação com outros países – uma análise exaustiva exigiria, obviamente, um artigo específico sobre o tema e um veredicto final só será possível dentro de alguns anos. A reação pública inicial confirmou o ponto de vista de Lawson sobre o NHS como uma religião estatal: os britânicos foram exortados a sair à rua todas as quintas-feiras, pelas 20h, e bater palmas aos heróis (Clap for Heroes), ou seja, ao pessoal do NHS.
O governo promoveu o slogan “Proteger o NHS!”, algo que foi pouco questionado pelos meios de comunicação britânicos. Apenas a imprensa estrangeira considerou que o slogan estava errado: isto é, que a função do serviço de saúde é proteger o público, e não o contrário. Da mesma forma, as críticas mais severas tendiam a ser feitas apenas no estrangeiro. O título principal do Australian Sydney Morning Herald (3 de maio, de 2021) era: “O maior fracasso de uma geração: onde é que a Grã-Bretanha errou?”. O artigo citava o Dr. Richard Horton, editor-chefe da The Lancet: “A gestão da crise da Covid-19 no Reino Unido é o mais grave fracasso da política científica numa geração.”
Os seguintes factos são especialmente pertinentes:
- Quando a pandemia eclodiu, os hospitais foram aconselhados a dar alta aos doentes idosos para que regressassem aos lares, apesar de se ter tornado rapidamente claro que as taxas de mortalidade por Covid eram muito mais elevadas nos mais velhos. Entre os dias 2 de março e 12 de junho de 2020, registaram-se 28.186 mortes em excesso nos lares ingleses, 18.562 das quais foram atribuídas à Covid.
- Ao mesmo tempo, o NHS descobriu que as suas reservas de equipamento de proteção individual (PPE), como equipamento de respiração e máscaras faciais para os trabalhadores da linha da frente dos cuidados de saúde, não eram adequadas aos fins a que se destinavam. Esta situação levou a uma corrida global extremamente dispendiosa para encontrar PPE, enquanto o pessoal do NHS ficou mal protegido.
- Quando o governo decidiu fazer do “Rastrear e localizar” (“Track and trace”) um objetivo político fundamental, o NHS inglês adotou um plano baseado na centralização dos testes nas suas próprias instalações, rejeitando a utilização de laboratórios do setor privado, como tinha sido feito na Alemanha. Isto revelou-se impossível de realizar em grande escala e todo o sistema de track-and-trace teve de ser novamente concebido, com perda de tempo valioso.
- Uma das principais métricas para avaliar a eficácia do sistema de saúde no controlo da pandemia foi a do excesso de mortalidade. Em 2020, registaram-se cerca de 697.000 mortes no Reino Unido, mais 85.000 do que seria normalmente esperado com base em padrões estatísticos. Em maio de 2020, o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) produziu um “z-score” para comparar as taxas de mortalidade excessiva entre países, considerando fatores como o tamanho da população e problemas de mortalidade pré-existentes. Quanto mais elevado o z-score, mais elevado o número de mortes em excesso, sendo um resultado superior a z15 classificado como “excesso extremamente elevado”. Os picos de z-score em excesso na primavera de 2020 foram: 44,1 em Inglaterra, 34,7 em Espanha e 22,7 em Itália.
O fraco desempenho do Reino Unido na luta contra a pandemia de Covid foi tanto mais surpreendente quanto o governo britânico impôs mais restrições às liberdades individuais do que qualquer outra grande economia. A Tabela 2 ordena os países entre 1 e 100 (100 sendo o mais rigoroso), considerando o encerramento do local de trabalho e das escolas, restrições a encontros públicos, controlos de viagens internacionais e exigências de permanência em casa, entre outros.
Tabela 2: Índice de rigor do confinamento
País | % |
---|---|
EUA | 45 |
França | 64 |
Austrália | 65 |
Itália | 82 |
Alemanha | 83 |
Reino Unido | 86 |
Fonte: University of Oxford, Blavatnik School of Government Response Stringency Index
A Tabela 3 resume as consequências económicas e médicas da pandemia em 2020. Limita-se às sete principais economias do mundo, o chamado “G7”, e usa dados produzidos pela OCDE em dezembro de 2020, bem como dados produzidos pelas Nações Unidos sobre a taxa de mortalidade por Covid por milhão de pessoas, em cada um dos países do G7, a 20 de janeiro de 2021.
Tabela 3: Impacto da Covid-19 nos países do G7 em 2020
País | Variação do PIB em 2020 | Taxa de mortalidade de Covid-19 por milhão de habitantes |
---|---|---|
Canadá | -5.4% | 491 |
França | -9.1% | 1,102 |
Alemanha | -5.5% | 609 |
Itália | -9.1% | 1,394 |
Japão | -5.3% | 38 |
Reino Unido | -11.2% | 1,389 |
EUA | – 3.7% | 1,266 |
Fontes: GDP OECD World Economic Outlook Dec 2020
Taxa de mortalidade: United Nations Data January 2021
A tabela mostra que o Reino Unido teve, de longe, a pior contração económica, com as previsões económicas a indicar uma descida de 11,2%, conjugada com a pior taxa de mortalidade conjunta (isto é, semelhante à da Itália).
O NHS conseguiu um feito positivo indubitável: uma vacinação em massa rápida e eficaz. Contudo, é revelador o facto de que isso tenha sido conseguido através da criação, pelo governo, de uma taskforce independente para a vacinação, fora das estruturas operacionais normais do NHS. Foi liderada por Kate Bingham, uma investidora de capital de risco com particular experiência em empresas do setor médico, e por outros protagonistas recrutados no setor privado, no setor voluntário e no exército. Também se recorreu a muito pessoal de clínica geral, que é a única parte do NHS que opera de forma semiautónoma, sendo esses médicos geralmente trabalhadores independentes e sócios dos seus consultórios. A taskforce para a vacinação obteve os seguintes resultados:
- Assumiu riscos empresariais ao identificar o conjunto de vacinas mais promissoras no verão de 2020, quando ainda não se sabia se alguma delas funcionaria, emitindo ordens de compra vinculativas em grande escala;
- Assegurou a disponibilidade de instituições de produção farmacêutica em grande escala para produzir essas vacinas no Reino Unido, de modo a que outros países, como os da União Europeia, não as pudessem desviar para as suas próprias populações;
- Com a ajuda da equipa logística do exército, montou um sistema de inoculação em massa eficaz e de larga escala.
Ninguém nega a competência e a dedicação do pessoal da linha da frente do NHS, que trabalhou incansavelmente para tentar salvar vidas em condições difíceis e colocando em risco as suas próprias vidas. Mas pode certamente argumentar-se que o sistema onde estão a trabalhar os desiludiu, e a nós também. O sucesso da taskforce para a vacinação mostra que são necessários uma liderança eficaz e um sistema que permita o seu funcionamento.[5] Os dados de que dispomos são limitados e a análise aqui efetuada é insuficiente para tirar conclusões sólidas. Contudo, pode certamente afirmar-se que não há provas de que o NHS tenha tido um desempenho melhor do que outras formas de prestação de cuidados de saúde; pelo contrário, parecem existir evidências de um desempenho relativamente fraco.
Providência social e Doutrina Social Católica
Passemos à análise da orientação que nos é dada pela Doutrina Social Católica em matéria de providência social. O Concílio Vaticano II, que, no início da década de 1960, renovou a ação da Igreja, exorta as pessoas para que trabalhem em conjunto para o “bem comum”. Este foi definido, por exemplo, em Gaudium et spes: “o bem comum – ou seja, o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição” (26). E o facto de a Igreja dever cuidar dos pobres e dos doentes é sublinhado no parágrafo 42 do mesmo documento: “E também, quando for necessário, tendo em conta as circunstâncias de tempos e lugares, pode ela própria, e até deve, suscitar obras destinadas ao serviço de todos, sobretudo dos pobres, tais como obras caritativas e outras semelhantes.”
É revelador como a primeira grande encíclica social Católica, Rerum novarum (publicada em 1891), contém muito material sobre a forma como poderia ser constituída uma alternativa Católica à assistência social do estado, embora este facto seja frequentemente ignorado pelos comentadores. No parágrafo 29, apoia fortemente a criação de grupos de autoajuda mútua: isto é, instituições no local de trabalho que oferecem ajuda aos necessitados, como, por exemplo, aliviando os que não podem trabalhar por doença ou ferimentos ou os viúvos. O documento recorda-nos as corporações medievais que ofereciam este tipo de apoio: “Os nossos antepassados experimentaram por muito tempo a benéfica influência destas associações (…). Sendo hoje mais cultas as gerações, mais polidos os costumes, mais numerosas as exigências da vida quotidiana, é fora de dúvida que se não podia deixar de adaptar as associações a estas novas condições.”
Também constata que a Igreja, ao longo da sua história, criou instituições de caridade e facilitou a doação de esmolas (16), mas alerta para o facto de estas entidades terem sido apropriadas ou “nacionalizadas” pelos governos, tema que iremos retomar: “Em não poucos países, o Estado tem deitado a mão a estas sociedades, e tem acumulado a este respeito injustiça sobre injustiça: sujeição às leis civis, privações do direito legítimo de personalidade, espoliação dos bens.”[6] (31)
Dois princípios parecem particularmente relevantes quando examinamos as questões sobre providência social. O primeiro prende-se com a antropologia Cristã: o facto de a compreensão que a Igreja tem da humanidade se basear na pessoa definida na sua relação com os outros e realizada através de pequenas associações. O segundo refere-se à subsidiariedade: o princípio de que as decisões devem ser tomadas ao nível mais baixo e mais local, e não por uma autoridade central.
O princípio mais fundamental da antropologia Cristã, de acordo com o Genesis, é o de que o homem é feito à imagem de Deus – imago dei. Por isso, a doutrina recorda-nos repetidamente que “cada um dos seres humanos, [é] e [deve] ser o fundamento, o fim e o sujeito de todas as instituições em que se expressa e realiza a vida social” (Mater et magistra, 218). Gaudium et spes baseia a ideia de “bem comum” na natureza da pessoa:
A pessoa humana, uma vez que, por sua natureza, necessita absolutamente da vida social, é e deve ser o princípio, o sujeito e o fim de todas as instituições sociais. Não sendo, portanto, a vida social algo de adventício ao homem, este cresce segundo todas as suas qualidades e torna-se capaz de responder à própria vocação, graças ao contacto com os demais, ao mútuo serviço e ao diálogo com os seus irmãos. (25)
É importante sublinhar este ponto. A pessoa humana é o ponto de partida da Doutrina Social da Igreja. Temos liberdade para sermos capazes de amar. Ser uma pessoa, ser chamado a amar, implica que também fazemos parte de uma sociedade. Mais do que isso: as pessoas não existem isoladamente. Ser uma pessoa humana é também fazer parte de uma sociedade, a começar pela família em que se nasce. Amar os outros é servi-los, fazer-lhes bem. E ao trabalharmos para nos realizarmos, a nós e aos outros, trabalhamos em conjunto: daí a repetida defesa das “pequenas associações”. A importância das pequenas associações reflete os limites da pessoa humana: não podemos ter relações profundas necessárias para o serviço ativo e o amor com um grande número de pessoas.
Por isso, é importante ter em mente a distinção entre pessoa, definida em relação com os outros, e indivíduo, definido em isolamento face a outros. A individualidade é o que distingue uma pessoa de todas as outras: é, na sua essência, um princípio de divisão ou mesmo de isolamento. A personalidade, por outro lado, é social, e é apenas nas relações sociais que alguém pode ser uma pessoa. Quanto mais ricas forem as relações pessoais, mais plenamente “pessoal” alguém será.
Provavelmente, nenhum Papa fez mais para desenvolver o pensamento social da Igreja do que o Papa João Paulo II, que escreveu três grandes encíclicas sobre o assunto. Gregg (1999) mostra como, ao longo da sua vida intelectual, João Paulo II expandiu e aprofundou consistentemente o entendimento da Doutrina Social Católica sobre a antropologia humana como um tema fundamental. A humanidade é o sujeito consciente dos atos morais, mas, ao mesmo tempo, é também uma pessoa, a imago dei, uma criatura que possui as propriedades espirituais da razão e do livre-arbítrio. Como Gregg argumenta, “[s]ão estes atributos da personalidade que conferem aos atos de trabalho do sujeito humano o seu caráter criativo e o seu significado moral-espiritual” (p. 218). Gregg refere ainda que um erro fundamental em grande parte do pensamento moderno reside na sua propensão para conceptualizar a humanidade em termos materiais – uma antropologia defeituosa do homem:
O desenvolvimento da Doutrina Social por João Paulo II sublinha um ponto central para todos os que desejam estudar ou desenvolver o pensamento social Católico de uma forma fiel à doutrina autorizada … [que] é profundamente antropológica na sua orientação, na medida em que destaca que tudo deve ser considerado em termos do que o homem realmente é: uma criatura espiritual falível chamada a um destino do outro mundo; um escolhedor; um conhecedor; e o sujeito de atos morais, sozinho e em associação com outros. Neste sentido, o ensinamento de João Paulo II pode ser entendido como constituindo um apelo aos pensadores sociais Católicos para “regressarem à pessoa”, e basearem o seu pensamento numa antropologia correta do homem. (p. 231)
O livro de Gregg foi publicado seis anos antes da morte de João Paulo II, em 2005. Mas as suas ideias são confirmadas pelo que o próprio Papa disse sobre este tema no seu último livro, Memory and Identity,[7] sobre a necessidade de uma liberdade autêntica e de uma antropologia verdadeira – em particular, no capítulo 7 (“Towards a Just Use of Freedom”) e no capítulo 18 (“The Positive Fruits of the Enlightenment”).
Já o conceito de subsidiariedade foi explicitamente desenvolvido pela primeira vez pelo Papa Pio XI em Quadragesimo anno, a encíclica que comemora o 40.º aniversário da Rerum novarum em 1931. Contudo, a ideia básica de restringir o poder do estado o mais possível já se encontrava na Rerum novarum, particularmente nos parágrafos 9 e 10 sobre a primazia da família face ao estado e nos parágrafos 28 e 29 sobre o papel do governo.[8] Quadragesimo anno define subsidiariedade como:
[A]ssim como é injusto subtrair aos indivíduos o que eles podem efetuar com a própria iniciativa e indústria, para o confiar à coletividade, do mesmo modo passar para uma sociedade maior e mais elevada o que sociedades menores e inferiores podiam conseguir é uma injustiça, um grave dano e perturbação da boa ordem social. O fim natural da sociedade e da sua ação é coadjuvar os seus membros, não destruí-los nem absorvê-los. Deixe, pois, a autoridade pública ao cuidado de associações inferiores aqueles negócios de menor importância, que a absorveriam demasiado. (79-80)
Gregg (2014) também discute a razão pela qual a Doutrina Social Católica implica um governo limitado. Em particular, o princípio da subsidiariedade confere às pessoas a autonomia moral necessária para que possam fazer escolhas morais livremente. Além disso, considerando que as pessoas se realizam através de relações com outras pessoas, afirma-se a prioridade da família e de outras associações locais sobre o estado. A este propósito, Booth observa:
A economia de mercado parece muito menos profunda do que realmente é, ou deveria ser, devido ao alargamento das competências do estado (…). Para mais de 90% da população, as decisões relativas a cuidados de saúde e educação são tomadas pelo estado (…). Deveríamos perguntar-nos se a desresponsabilização das famílias por serviços essenciais como a educação, os cuidados de saúde, as poupanças, os seguros e a habitação não prejudica efetivamente o desenvolvimento e o florescimento da pessoa humana. (2014, 40-41)
Responsabilidade e virtude
No seu influente livro After Virtue (1981), o filósofo moral Alasdair MacIntyre argumentou que, no mundo moderno, “[a] linguagem da moralidade está num estado de grave desordem (…). Perdemos – em grande parte, ou mesmo inteiramente – a nossa compreensão, tanto teórica como prática, da moralidade.” (p. 2) O seu argumento é o de que, embora a sociedade moderna continue a usar uma linguagem moral, fá-lo na ignorância do entendimento tradicional do significado dos conceitos morais. Por conseguinte, a linguagem é usada desafiando a aplicação universal geralmente entendida. MacIntyre considera que, embora se verifiquem intensos debates públicos e privados sobre as questões éticas do nosso tempo, como a da moralidade de ir para a guerra ou a do acesso à educação ou cuidados de saúde, esses debates são “intermináveis”: ou seja, nunca chegam a uma conclusão, uma vez que a sua aparente racionalidade é falsa. MacIntyre conclui que a única forma de ter discussões produtivas sobre cuidados de saúde, por exemplo, é regressar ao antigo conceito de virtudes, como desenvolvido pelo filósofo grego Aristóteles e alargado e integrado no pensamento Católico por Tomás de Aquino. Na minha opinião, este é um ponto muito importante e que, do ponto de vista da Doutrina Social Católica, merece ser compreendido de uma forma mais ampla.
Aristóteles usou o termo “phronesis” (φρονησισ) para designar “sabedoria prática”. Trata-se de uma espécie de competência que pode ser adquirida através de uma boa educação e que orienta a pessoa para analisar e fazer um juízo preciso sobre o que é correto fazer numa determinada situação. É também chamada “virtude prática” e a sua prática conduz ao desenvolvimento de um caráter moralmente bom. Questiono-me se o empobrecimento colossal do nosso pensamento moral, que MacIntyre descreve, não se deve, pelo menos em parte, ao facto de nos ter sido retirada a necessidade de praticar a phronesis em muitas das partes mais importantes das nossas vidas.
Por outras palavras, áreas como o cuidado dos doentes e idosos, a ajuda aos pobres e a educação das nossas crianças são, no Reino Unido, esmagadoramente monopólio de um estado rígido e burocrático que nos deixa, moralmente falando, num estado de infantilismo subdesenvolvido: não há decisões significativas para o indivíduo tomar. Se assim for, isso implicaria que o estado burocrático moderno impede o desenvolvimento humano ou o “bem comum” e está, nessa medida, em conflito com a Doutrina Social Católica. Este não é um ponto comummente encontrado na exegese da Doutrina Social Católica. Contudo, considere-se a Centesimus annus:
Assistiu-se, nos últimos anos, a um vasto alargamento dessa esfera de intervenção, o que levou a constituir, de algum modo, um novo tipo de estado, o «Estado do bem-estar». (…) Não faltaram, porém, excessos e abusos que provocaram, especialmente nos anos mais recentes, fortes críticas ao Estado do bem-estar, qualificado como «Estado assistencial». As anomalias e defeitos, no Estado assistencial, derivam de uma inadequada compreensão das suas próprias tarefas. Também neste âmbito, se deve respeitar o princípio de subsidiariedade: uma sociedade de ordem superior não deve interferir na vida interna de uma sociedade de ordem inferior, privando-a das suas competências, mas deve antes apoiá-la em caso de necessidade e ajudá-la a coordenar a sua ação com a das outras componentes sociais, tendo em vista o bem comum. (48)
E podemos relacionar isto com o parágrafo 13 da mesma encíclica:
[O Socialismo] defende que esse mesmo bem se pode realizar prescindindo da livre opção, da sua única e exclusiva decisão responsável em face do bem ou do mal. O homem é reduzido a uma série de relações sociais, e desaparece o conceito de pessoa como sujeito autónomo de decisão moral, que constrói, através dessa decisão, o ordenamento social (…), o que lhe torna muito mais difícil reconhecer a sua dignidade de pessoa e impede o caminho para a constituição de uma autêntica comunidade humana.
O Papa João Paulo II referia-se aqui ao princípio geral do socialismo – mas será que o argumento não se aplica também àquelas partes das nossas vidas em que as decisões foram socializadas, como os cuidados de saúde no Reino Unido e, em menor grau, a educação? O facto de estarmos privados de fazer escolhas morais guiadas pela sabedoria prática nestas áreas empobrece-nos, de certa forma, como pessoas humanas.
Os expoentes da Doutrina Social Católica utilizam, por vezes, a linguagem dos direitos humanos quando defendem, por exemplo, o acesso universal aos cuidados de saúde. Na minha opinião, temos de ser muito cautelosos na utilização dessa terminologia, uma vez que os direitos humanos são essencialmente políticos. No Reino Unido, em sentido formal, remontam à Bill of Rights de 1689, na sequência do afastamento do monarca absoluto Stuart, James II, e estabelecia certos direitos civis básicos e limites aos poderes do monarca. Esta declaração, por sua vez, inspirou a Declaração de Independência americana, em 1776, e o uso da linguagem dos direitos alcançou reconhecimento mundial com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, das Nações Unidas, em 1948.
Levanta-se, então, o seguinte problema: na medida em que os direitos humanos são dispositivos políticos, qualquer questão sobre direitos humanos implica que a solução reside na ação política através do governo. Ora, isto não é consistente com a Doutrina Social da Igreja. Na verdade, a afirmação moderna, codificada na lei, de “direitos” ao aborto, ao suicídio assistido e a alguns direitos sexuais, é certamente incompatível com a doutrina Católica tradicional e, de facto, o magistério esclareceu repetidamente que o que entende por direitos humanos é muito diferente do entendimento secular moderno. Por exemplo, em Centesimus annus:
Entre os principais, recordem-se: o direito à vida, do qual é parte integrante o direito a crescer à sombra do coração da mãe depois de ser gerado; o direito a viver numa família unida e num ambiente moral favorável ao desenvolvimento da própria personalidade; o direito a maturar a sua inteligência e liberdade na procura e no conhecimento da verdade (…) Fonte e síntese destes direitos é, em certo sentido, a liberdade religiosa, entendida como direito a viver na verdade da própria fé e em conformidade com a dignidade transcendente da pessoa. (47)
É também significativo que MacIntyre, em After Virtue, destaque o termo “direitos humanos” como algo que, à primeira vista, parece um conceito ético, mas que, na verdade, não é. Ele argumenta que as teorias dos direitos naturais carecem de critérios claros para a sua aplicação, mas que são padrão nas principais teorias religiosas e éticas, como a ética das virtudes de Aristóteles.
Para concluir esta secção, vale a pena citar o Padre Robert Sirico, que argumenta que é a importância absoluta da providência social que nos obriga a desafiar a ortodoxia atual:
Muitos passaram a acreditar que a única forma de assegurar o progresso deste tipo de apoio é através de um elaborado aparelho estatal (…). Mas a questão de saber se esses sistemas devem ser totalmente repensados raramente é levantada. Estamos a dar os primeiros passos para considerar uma questão muito radical: se a assistência aos pobres deve ser tratada da mesma forma que a religião deve ser tratada na sociedade – isto é, como algo a ser mantido fora da política e imunizado da intervenção política, não porque seja uma prioridade social menor, mas precisamente porque é de uma prioridade social tão elevada que não ousamos permitir que o estado domine nessa área. (2014, 86-87)
As corporações medievais
Como podemos tentar implementar a sugestão do Padre Sirico de repensar a atual ortodoxia que liga a providência social ao estado? Reconstruir a sociedade civil parece ser um bom começo, em particular através de um renascimento dos grupos de autoajuda mútua, inspirados em valores espirituais, que poderíamos chamar pelo seu antigo nome medieval: “guildas” ou “corporações”. É claro que não podemos regressar ao modelo exato das guildas medievais, tal como não podemos voltar a falar inglês chauceriano. Ainda assim, vale a pena resumir o que estas organizações conseguiram neste domínio.
Algumas pessoas concebem as guildas como uma espécie de proto-sindicatos; outras consideram-nas uma espécie de cartel de negócios. Ambas as ideias são anacrónicas. Os sindicatos surgiram como um movimento de massas, um fenómeno essencialmente reativo em resposta à revolução industrial. Em contrapartida, as guildas eram associações de homens livres, de artesãos que trabalhavam em conjunto para se sustentarem mutuamente e assegurarem a qualidade do que produziam, através de aprendizagem e formação. Não se tratava de comunas: cada oficina era dirigida por um mestre que trabalhava para proveito próprio.
Contudo, é de notar que estas corporações tinham várias funções interligadas: religiosas, económicas, de apoio mútuo e de obras de caridade. De facto, é importante não esquecer que eram, primeiramente, fraternidades religiosas, baseadas no desejo de santificar o seu trabalho e de se honrarem a si mesmas no seio da comunidade como uma irmandade religiosa. Em Religion and Rise of Western Culture (1950), Dawson observa que:
Uma das características mais notáveis da vida das corporações medievais era a forma como combinavam atividades seculares e religiosas no mesmo complexo social. A respetiva capela, a realização de orações e missas para os irmãos falecidos e a representação de espetáculos e peças de mistério por ocasião das grandes festas não eram menos a função da corporação do que o banquete comum, a regulação do trabalho e dos salários ou a assistência aos membros na doença e no infortúnio. (p. 207)
Um objetivo comum de todas as guildas era diligenciar orações na sua igreja, em particular para as almas dos membros falecidos. No livro The Stripping of the Altars (1992), Duffy escreve sobre o contexto inglês nas vésperas da Reforma:
Com algumas variações, todas as guildas da época medieval tardia seguiam o (mesmo) modelo: manutenção das luzes diante das imagens e do Santíssimo Sacramento, presença e orações no funeral dos membros falecidos e, finalmente, prática da sociabilidade e da caridade numa festa comunitária associada ao dia do santo. (p. 143)
Os economistas tendem a ser negativos em relação às corporações, considerando-as como cartéis e obstáculos burocráticos ao crescimento económico. Isto foi verdade durante o desenvolvimento das economias capitalistas a partir do século XVII. (Vale a pena notar que as corporações foram essencialmente extintas em Inglaterra por volta de 1700, mas permaneceram em grande parte da Europa até à segunda metade do século XIX.) Contudo, durante a Idade Média passou-se o contrário. As guildas surgiram na Europa em simultâneo com o renascimento das vilas e cidades, por volta do ano 1100, numa sociedade com uma densidade populacional muito baixa, más ligações de transporte e um pequeno excedente económico em relação aos níveis de subsistência. Era também um mundo com pouco poder mecânico, onde a maioria do capital se encontrava na formação das competências humanas, ou seja, nos sete anos necessários para formar um aprendiz como artesão. Nesta situação, em que o comércio era inerentemente local e de pequena escala, o sistema de corporações contribuía para a afetação eficiente do capital e restringia o crescimento de monopólios locais. Como o historiador económico Pollard afirmou:
As corporações, no início, tinham numerosas funções que favoreciam o progresso. Organizavam a formação dos aprendizes, preservavam padrões de competência e qualidade, garantiam a integridade dos seus membros e encontravam um mercado para eles e, acima de tudo, libertavam-nos das imposições feudais e permitiam-lhes participar no governo da cidade. (…) Com o passar dos séculos, contudo, o sistema outrora progressista passou a impor cada vez mais rigidez à economia até se tornar, por fim, num entrave ao progresso. (1981, 59)
As guildas também promoviam obras de caridade numa sociedade pobre, onde os indigentes teriam, de outra forma, passado fome. Estas obras iam desde a esmola direta até à gestão de hospitais e escolas. Como Renard observa, em Guilds in the Middle Ages (1919), houve uma tentativa genuína de integrar os ideais de fraternidade no seu papel económico, com os laços de unidade fortalecidos, a intervalos regulares, por festas e banquetes:
O comerciante ou artesão encontrava na sua guilda segurança nos momentos de aflição, ajuda monetária nos momentos de aflição e assistência médica nos momentos de doença. (…) Para além da assistência obrigatória em certos ofícios e nos funerais dos seus membros, a fraternidade possuía uma caixa, ou seja, um fundo mantido com as quotizações e doações voluntárias dos membros, bem como multas em que incorriam. (p. 42)
Assim, as guildas eram apenas uma parte de um sistema interligado Cristão de ajuda e providência social, associadas às grandes igrejas e hospitais, sendo que estes últimos, neste período, forneciam quer esmolas quer medicamentos. No entanto, embora a esmola fosse uma função social importante das guildas, talvez a sua característica mais distintiva fosse a de ser um grupo de autoajuda mútua. De facto, o cofre da guilda ou a tesouraria fraterna assemelhava-se muito às modernas sociedades de mutualismo, na medida em que não só ajudavam quando alguém se encontrava incapaz de trabalhar, como também garantiam uma pensão para os doentes. Como tal, permitiam que os trabalhadores comuns e as suas famílias recebessem um pagamento em caso de doença e velhice. De facto, o exemplo mais antigo conhecido de um regime de pensões provém da Guilda de St. James Garlickhythe, em1375:
Se algum dos membros da dita irmandade cair em tal situação que não tenha nada por causa da velhice nem possa ajudar-se a si próprio, e tiver vivido como membro da irmandade durante 8 anos e cumprido todos os deveres dentro desse tempo, todas as semanas terá desta caixa comum 13 pence até ao termo da sua vida ou até ter recuperado do seu infortúnio.
Infelizmente, a riqueza que as guildas acumularam atraiu a atenção de um rei ganancioso e obstinado, Henrique VIII, que confiscou os seus bens aquando da Reforma. Nas palavras de Scarisbrick, em The Reformation and the English People (1984):
Quando os comissários reais saíram em 1546, e de novo em 1548, para inspecionar os colégios, as chantrias, as terras de óbito, as guildas e as fraternidades que a Coroa estava prestes a confiscar, estavam interessados em instituições com dotações permanentes de terra e propriedade – era isso que o governo procurava. (p. 31)
Uma rede próspera de hospitais, escolas e caridades locais foi abolida. Henrique VIII prometeu usar o dinheiro para refundar essas instituições numa “base mais pura”, mas nunca o fez. A Inglaterra medieval tinha cerca de 500 hospitais, cujos bens foram confiscados com a Reforma. Só a influência política salvou os hospitais de Londres, como nota Whelan em The Corrosion of Charity (1996):
Henrique VIII prometeu substituir os hospitais monásticos por outras fundações, pagas pelo governo, mas esta promessa ficou por cumprir. Apenas três dos hospitais medievais (que se destinavam tanto a cuidar dos pobres e dos idosos, como dos doentes) sobreviveram à Reforma e foram reconstituídos como organizações seculares, todos eles em Londres: St. Bartholomew’s, St. Thomas’ e Bethlehem (Bedlam). Até ao século XVIII, não se construíram mais hospitais em Londres. (p. 3)
A incursão burocrática em iniciativas locais prósperas
Notamos supra a queixa expressa em Rerum novarum sobre a confiscação pelo estado das fundações de caridade Católicas no século XIX. No final desse século, isto foi particularmente verdade em França e em Itália, mas, infelizmente, é um aspeto recorrente da história da Igreja. Em 1948, a história repetiu-se no Reino Unido, com a nacionalização dos hospitais locais e, efetivamente, das sociedades mutualistas.
Os defensores do atual sistema de prestação de cuidados de saúde raramente, ou nunca, parecem estar conscientes de que, quando o atual sistema foi criado em julho de 1948, substituiu um sistema vibrante, local e autossuficiente – embora talvez de forma menos brutal do que há 400 anos. As iniciativas locais que funcionavam bem tinham sido abolidas pela força. Halsey observou como a ideologia impulsionou a abolição das iniciativas locais:
A democracia chegou à Grã-Bretanha de baixo para cima. As classes trabalhadoras urbanas do século XIX eram constituídas por desenraizados recém-chegados às cidades industriais provincianas em crescimento, que responderam às suas circunstâncias com uma extraordinária criatividade social, dando à Grã-Bretanha, na primeira metade do século XX, as suas organizações populares mais características: a loja cooperativa, o clube de futebol e as sociedades mutualistas. Este proletariado urbano criou as suas próprias sociedades locais e comunitárias de providência social (…). [Mas] o movimento trabalhista, dominado pelas tradições estatistas de reforma propostas pelos Webbs e pelos fabianos, propôs-se nacionalizar a democracia e a providência social, transferindo a fraternidade, a igualdade e a liberdade da comunidade local para o estado nacional. (1986, 167)
Um dos mais ferozes apoiantes do socialismo democrático de cima para baixo no governo de Harold Wilson de 1964-1970 foi Richard Crossman. Contudo, em 1973, perto do fim da sua vida, Crossman lamentou o modo como o Labour Party tinha substituído a ação voluntária pelo fiat burocrático:
A partir de 1920, a atitude normal da esquerda tem sido a de se opor à filantropia, à caridade e a tudo o que se relaciona com benfeitorias por parte da classe média. (…) Estou agora convencido de que a oposição do Labour Party à filantropia e ao altruísmo causou graves danos. (Crossman, 1976, 278)
Como Green mostrou em Reinventing Civil Society (1993), existia uma próspera rede independente de hospitais gratuitos e sociedades de mutualismo que providenciavam seguros aos seus membros, e que foram incorporadas à força no Estado-providência. Dos cerca de 3.000 hospitais existentes à data, 2.751 foram assumidos pelas recém-criadas agências governamentais ou “conselhos de saúde”. É revelador o facto de os 70 hospitais católicos terem sido o único grupo significativo a conseguir manter-se independente do NHS proposto. Nessa altura, os enfermeiros irlandeses (Católicos) constituíam uma grande percentagem do pessoal de enfermagem. Pensa-se que o Cardeal Griffin conseguiu vencer a resistência do ministro do NHS, Nye Bevan, após uma intensa batalha política, ameaçando desencorajar a chegada de novos enfermeiros estagiários da Irlanda se os hospitais Católicos fossem nacionalizados.
Ainda assim, mesmo aqueles que partilham estas críticas parecem inibidos de avançar com alternativas positivas, como Whelan observou há 25 anos:
A constatação de que algo correu muito mal com a providência social é agora aceite por quase todos os quadrantes do espectro político, e a reforma do Estado-providência está a ser seriamente ponderada. No entanto, muitos dos que estão plenamente conscientes dos seus defeitos ainda se sentem obrigados a defender o Estado-providência por medo do que aconteceria se fosse limitado. (…) Isto é assumir que a alternativa ao Estado-providência é não haver providência social. (1996, 1)
Mas Halsey diz-nos como podemos avançar:
Weber via apenas uma saída para a tirania burocrática: o regresso à pequena escala. Escritores posteriores, seguindo esta linha de raciocínio, foram rejeitados como propondo uma absurdidade económica. (…) Mas, pelo menos, este tipo de resposta às condições modernas do poder do estado e da integração social manipuladora, com o seu reconhecimento do fracasso dos laços emocionais em grandes estruturas impessoais de autoridade, aponta para as possibilidades de solidariedade através da democracia. (1986, 171)
Ética e medicina
Neste debate sobre a Doutrina Social da Igreja e a prestação de cuidados de saúde, há um último e vital ponto a referir. Trata-se de uma questão identificada por S. John Henry Newman, há mais de 150 anos, numa palestra dirigida a médicos estagiários sobre “Christianity and Medical Science”. Esta palestra faz parte do capítulo final do livro de Newman, Idea of a University (1873). Nela, o autor adverte a sua audiência de que, enquanto médicos, poderiam legitimamente tomar decisões baseadas no seu conhecimento profissional, mas que são ilícitas quando analisadas a um nível mais elevado, moral ou religioso. O autor clarifica o seu ponto: em caso de agitação política, um general pode recomendar uma intervenção militar para a reprimir, o que é lógico do seu ponto de vista; contudo, o seu superior político pode rejeitar este conselho com base no seu pensamento político superior, para o qual o juízo militar é apenas um fator a ter em consideração. Também um médico que toma decisões sobre intervenções médicas precisa de recorrer a uma autoridade superior.
Newman dá ainda o exemplo de uma freira, também enfermeira, que é aconselhada pelos médicos a deixar o local onde deflagrou uma peste. Este conselho é correto do ponto de vista médico, mas se a freira, que dedicou a sua vida a cuidar dos feridos, decidir ficar, contentando-se em arriscar a sua vida desta forma, a sua decisão é uma decisão moral superior ao conselho puramente técnico dos médicos. No capítulo 10, parte 3, Newman afirma: “O médico tinha razão, mas não conseguia fazer valer o seu argumento. Ele tinha razão no que dizia, dizia o que era verdade, mas teve de ceder.” E continua:
Um paciente está a morrer: o padre deseja intervir para que ele não morra sem a devida preparação, [mas] o médico diz que pensar em religião o vai perturbar e pôr em risco a sua recuperação. (…) Penso que o padre deve tomar aquela decisão, tal como o político, e não o comandante-chefe, tomaria a decisão quando política e estratégia entram em colisão.
Newman está a alertar para o risco do que hoje seria chamado “managerialism” [“gerencialismo”]: por outras palavras, a possibilidade de as decisões médicas serem tomadas numa base puramente técnica, com as considerações éticas e religiosas a serem relegadas para segundo plano. O terrível homicídio do deputado Católico David Amess, em outubro de 2021, é um exemplo disso: um padre foi ao local para administrar a extrema-unção ao moribundo, mas foi impedido pela polícia de o fazer com a justificação de que se tratava de um local de crime.
Este é sempre um risco em qualquer profissão, mas talvez seja particularmente evidente quando o tratamento médico é essencialmente um monopólio estatal e, por conseguinte, está permeado pela ideologia política implícita do momento. Os pontos de vista religiosos podem, por vezes, parecer um impedimento irrelevante à prestação de cuidados médicos eficientes e rentáveis nesse ambiente. Além disso, num monopólio deste tipo, as pessoas são impedidas de procurarem instituições que prestem cuidados de acordo com a sua consciência.
O pensamento de Newman foi reiterado pelo Cardeal Griffin, em 1946, quando emitiu uma declaração pública sobre a lei que previa a aquisição dos hospitais voluntários sem compensação:
Os hospitais voluntários deveriam ter o direito de trabalhar fora do sistema estatal. Muitos dos hospitais voluntários neste país foram fundados com um objetivo específico: permitir que os pacientes usem hospitais que observam os costumes e os princípios da sua fé. Esta é uma questão vital no tratamento de doenças e enfermidades em que a prática médica pode, por vezes, entrar em conflito com os princípios morais dos pacientes. Para garantir estes direitos, é essencial que os compromissos do hospital salvaguardem os princípios dos doentes para cujo benefício o hospital foi criado.
Embora exista um pequeno número desses hospitais, incluindo alguns hospitais Católicos, o método de financiamento dos cuidados de saúde no Reino Unido impede a utilização efetiva destas organizações, exceto pelos mais abastados da sociedade: dificilmente será uma “opção para os pobres”.
Conclusão: Reformar os cuidados de saúde no Reino Unido
Se a análise anterior estiver correta, parece óbvio que a prestação de cuidados de saúde no Reino Unido necessita de uma reforma significativa e da introdução de concorrência. Isto não significa a introdução de um sistema de cuidados de saúde ao estilo norte-americano. Um passo importante poderia ser copiar a Austrália que, em 1975, separou o pagamento dos cuidados de saúde da prestação dos mesmos. Essencialmente, o governo dá a cada pessoa um cartão de saúde que pode ser apresentado em qualquer prestador de cuidados de saúde acreditado, sendo os procedimentos médicos pagos a uma taxa fixa. A França e a Alemanha também providenciam exemplos de como manter a pluralidade da prestação e, por conseguinte, a concorrência. Na Alemanha, uma parte substancial da prestação de cuidados médicos é feita por instituições religiosas.
Parece também haver uma clara necessidade de simplificar a atual complexidade bizantina da burocracia do NHS, com o risco evidente de o pessoal se sentir obrigado a dar prioridade ao trabalho burocrático em detrimento dos cuidados aos pacientes. O princípio da subsidiariedade não é apenas um princípio político. As organizações devem garantir que os seus trabalhadores têm um grau adequado de autonomia. Por exemplo, durante a pandemia, 40.000 médicos e enfermeiros reformados pediram para regressar ao trabalho. No entanto, apenas 5.000 foram bem-sucedidos, tendo muitos deles sido dissuadidos pelas exigências burocráticas de apresentar 21 elementos de prova diferentes, mais tarde encurtados para “apenas” 15, para apoiar o seu pedido.[9]
Contudo, para além de reformas práticas, é necessário que haja mudanças filosóficas no modo como vemos os cuidados de saúde. Os pontos de vista de Newman, discutidos acima, assentam na crença, largamente assumida no seu tempo, de que há uma hierarquia de conhecimento. Por outras palavras, que a teologia e a filosofia estavam num nível mais elevado do que os assuntos puramente técnicos, como a medicina ou a guerra. No entanto, desde o início do século XX, este ponto de vista tradicional tendeu a desvanecer-se, na medida em que a complexidade e o volume de estudos académicos conduziram a uma especialização crescente.
Haverá algum modo de reintroduzir esta hierarquia do conhecimento dada a intensa especialização académica da nossa era? MacIntyre observa que as universidades foram fundadas na Idade Média para permitir a discussão filosófica e teológica sobre o pensamento Católico e as suas implicações para a vida contemporânea. O facto de se basearem na teologia Católica ajudou a garantir que existia um princípio integrador a partir do qual os temas podiam ser discutidos em relação uns com os outros. MacIntyre argumenta que, mesmo hoje, ou talvez mais particularmente hoje, os filósofos Católicos são necessários para fornecer um princípio intelectual unificador, que é a única forma de permitir que um debate moral genuíno e produtivo possa ter lugar. Como ele diz:
[U]ma das tarefas dos filósofos Católicos agora deve ser a de seguir a injunção de João Paulo II em Fides et Ratio de fazer filosofia de modo a abordar as preocupações humanas mais profundas que sublinham os seus problemas fundamentais, sem sacrificar o rigor ou a profundidade. (2009, 176)
Que aqueles de nós que estudam o pensamento social Católico e a Doutrina Social Católica se sintam encorajados pelas palavras de MacIntyre e as utilizem para analisar e desafiar os males da sociedade contemporânea, como os atuais modos de prestação de cuidados de saúde.
Referências
Arnold, M., et. al. (2019), Progress in cancer survival, mortality, and incidence in seven high-income countries 1995-2014 (ICBP SURVMARK-2): a population-based study, Lancet Oncol. November 20(11):1493-1505.
Booth, P. M. (2014), “Understanding Catholic Social Teaching in the light of economic reasoning”, in Booth, P. M. (ed.), Catholic Social Teaching and the Market Economy, London: St. Pauls.
Charles, R. (1998), Christian Social Witness and Teaching: The Catholic Tradition from Genesis to Centesimus Annus, Leominster: Gracewing.
Crossman, R. H. S. (1976), “The Role of the Volunteer in a Modern Social Service”, in Halsey A. H. (ed), Traditions of Social Policy, Oxford: Blackwell.
Dawson, C. (1950), Religion and Rise of Western Culture, London: Sheed & Ward.
Duffy, E. (1992), The Stripping of the Altars, New Haven, USA: Yale University Press.
Green, D. (1983), Reinventing Civil Society, London: Institute of Economic Affairs.
Gregg, S. (2014), “Catholicism and the case for limited government”, in Booth, P. M. (ed.), Catholic Social Teaching and the Market Economy, London: St Pauls.
Gregg, S. (1999), Challenging the Modern World- Karol Wojtyla/John Paul II and the development of Catholic Social Teaching, Maryland: Lexington Books.
Halsey, A. H. (1986), Change in British Society, 3rd Edition, Oxford: Oxford University Press.
Lawson, N. (1992), The View from No. 11: Memoirs of a Tory Radical, London: Bantam Press.
MacIntyre, A. (1981), After Virtue – a study in moral theory, London: Duckworth.
MacIntyre, A. (2009), God, Philosophy, Universities, London: Continuum.
Newman, St John Henry (1873), The Idea of a University Defined and Illustrated – in nine discourses delivered to the Catholics of Dublin.
Pollard, S. (1981), Peaceful Conquest – The Industrialization of Europe 1760-1970, Oxford: Oxford University Press.
Renard, G. (1919), Guilds in the Middle Ages, London: Bell.
Scarisbrick, J. J. (1984), The Reformation and the English People, Oxford: Blackwell.
St. Pope John Paul II, (2005), Memory and Identity, London: Phoenix.
Sirico, R. (2014), “Rethinking welfare, reviving charity: a Catholic alternative”, in Booth, P. M. (ed), Catholic Social Teaching and the Market Economy, London: St. Pauls.
Weber, M. (1947), The Theory of Social and Economic Organization, New York: Oxford University Press.
Whelan, R. (1996), The Corrosion of Charity- from moral renewal to contract culture, London: Institute of Economic Affairs Health and Welfare Unit.
Encíclicas papais e outros documentos da Igreja referidos nesta secção
João Paulo II, 1991, Centesimus annus, carta encíclica:
Vaticano II, Gaudium et spes, 1965, Pastoral Constitution on the Church in the World:
João XXIII, 1961, Mater et magistra, carta encíclica:
Pio XI, 1931, Quadragesimo anno, carta encíclica:
Leão XIII, 1891, Rerum novarum, carta encíclica:
Questões para discussão
Se os resultados do NHS fossem iguais aos dos sistemas de saúde do resto do mundo, considera que a Doutrina Social Católica nos levaria a preferir outras abordagens de prestação de cuidados de saúde?
De que modo o nosso sistema de prestação de cuidados de saúde reflete os princípios da subsidiariedade e da solidariedade?
Numa sociedade altamente secularizada, é provável que mesmo as instituições de saúde da Igreja estejam imunes às pressões para executar procedimentos e tratamentos que a Igreja considera imorais?
Que outros sistemas de saúde no mundo poderiam refletir melhor o princípio da subsidiariedade?
Como respondeu a Igreja ao apelo de cuidar dos doentes em épocas anteriores?
Notas de rodapé
[1] Ao longo do texto, utilizaremos as iniciais NHS para nos referirmos ao Serviço Nacional de Saúde britânico, sigla pelo qual é amplamente reconhecido. (N.T.)
[2] Cf: https://www.kingsfund.org.uk/blog/2018/05/nhs-international-spending.
[3] Cf: https://www.oecd-ilibrary.org/social-issues-migration-health/health-at-a-glance-2019
[4] Cf. Care Quality Commission, Royal Shrewsbury Hospital Quality Report: Date of inspection visit: 16th April 2019, Date of Publication 6th December 2019.
[5] É de realçar que a taskforce para a vacinação estava a trabalhar para atingir um único objetivo (a vacinação em massa). O planeamento central de qualquer atividade é muito mais fácil (e por vezes adequado) quando existe um único objetivo facilmente definido.
[6] Vale a pena notar que isto aconteceu em grande escala durante a Reforma. E, embora os hospitais católicos tenham permanecido nas mãos da Igreja aquando da fundação do NHS, outros hospitais de caridade foram nacionalizados.
[7] Tradução portuguesa: Memória e Identidade, Bertrand Editora, 2005. (N.T.)
[8] Como a tradução portuguesa desta encíclica não contém a numeração por parágrafos, todos os números indicados de Quadragesimo anno remetem para a versão em língua inglesa. (N.T.)
[9] Cf. “Retired doctors must fill in 15 forms before being able to give jab”, in Daily Telegraph (9 de Janeiro, 2021).