Introdução
É possível argumentar que deve haver uma simpatia natural pela globalização entre os Católicos. A Igreja Católica deseja levar a fé até aos confins da terra. Considerando isto, por que razão não deverão as relações comerciais e culturais ser estendidas para lá das fronteiras? Para além disso, pode perguntar-se se a hostilidade para com estrangeiros ou o instinto de autopreservação (mesmo que mal entendido) que acompanha regularmente o protecionismo é uma forma saudável de levar a cabo relações políticas, civis e económicas. O Papa Francisco, por exemplo, exortou o Presidente Trump a construir “pontes em vez de muros”[1], referindo-se ao desejo do presidente dos Estados Unidos de reduzir a migração, proveniente do México, usando restrições físicas.
Apesar disto, a Igreja tem expressado preocupações com a globalização na prática. O Papa disse:
Reconheço que a globalização ajudou muitas pessoas a sair da pobreza, mas também condenou muitas outras a morrer à fome. É verdade que a riqueza global está a crescer em termos absolutos, mas as desigualdades também têm crescido e surgiram novas pobrezas.[2]
Há também preocupações legítimas de que uma economia globalizada acabe por prejudicar as culturas locais e o aspeto relacional da atividade económica. Esta apreensão foi expressa novamente na encíclica social mais recente do Papa Francisco, Fratelli tutti (100). Mas, por outro lado, a globalização pode conduzir ao desenvolvimento de relações económicas e culturais que ultrapassam as fronteiras nacionais e que podem ser frutuosas e gratificantes.
Curiosamente, o historiador vitoriano Lord Macaulay admitiu que “a força espiritual do Protestantismo era uma mera milícia local” em comparação com o alcance global do Catolicismo: “Se [um Jesuíta] era desejado em Lima, ele estava no Atlântico na frota seguinte”, Macaulay explicou, “se ele era desejado em Bagdad [sic], estava no deserto na caravana seguinte”.[3] Ao contrário de Martinho Lutero, que via o mundo fora da Europa protestante como repleto de perigos morais, Inácio de Loyola e os Jesuítas (juntamente com as renascidas ordens mendicantes) viam um imenso horizonte de oportunidades para a Igreja.
Pareceria claro que a Doutrina Social da Igreja nunca deveria rejeitar a globalização enquanto tal. Mas, como em outras áreas da vida económica, pode alertar para manifestações particulares da globalização, ou para práticas ou estruturas legais que são injustas. É através desta lente que este capítulo vai examinar o pensamento e a doutrina sociais católicos e a sua relação com a globalização.
A globalização numa perspetiva histórica
Parte-se frequentemente do princípio de que a globalização é um fenómeno moderno e que resulta do que é descrito como as influências “neoliberais” na política económica. Esta ideia não tem fundamento histórico. A globalização passou por diferentes períodos. De facto, o comércio global e a circulação de pessoas podem ser vistos como extensões naturais da vida económica e empresarial quotidiana na ausência de restrições físicas ou impostas pelos governos.
Sabemos, através de descobertas arqueológicas, que o comércio dos minerais obsidiana e chert teve lugar na Nova Guiné no período paleolítico (c. 17.000 AC).[4] No período neolítico, escavações arqueológicas mostraram o uso generalizado de obsidiana para cortar utensílios e ferramentas. Foram descobertos artefactos de obsidiana em áreas do Mediterrâneo onde o sílex local é o chert sedimentar, o que prova a existência de rotas comerciais (provavelmente com as ilhas do sul da Grécia).[5] Durante o período do império romano e o crescimento do Islão, as rotas de comércio cresceram e desenvolveram-se. Numa fase posterior, a Liga Hanseática desenvolveu relações comerciais que abrangiam uma área que se estendia de Novgorod, hoje território russo, até Boston, em Inglaterra. Tratava-se de um projeto muito ambicioso e eficaz, que procurava reduzir os obstáculos ao comércio terrestre e marítimo. Bacalhau, sal, arenque, pele, madeira e prata eram alguns dos principais produtos comercializados. Mas havia também uma troca de conhecimento e competências: o exercício daquilo que atualmente se chama “soft power” ou “soft diplomacy”. Estes desenvolvimentos transcenderam os estados existentes, que frequentemente impediam a cooperação económica.
Em maior ou menor grau, e com frequência interrompidas por guerras ou doenças, as relações económicas globais têm sido uma parte importante da evolução da cultura no Ocidente. Nenhum comprador britânico consideraria a compra de batatas, tomates, azeite, café, chocolate, açúcar, peru, cenouras, frango e milho doce (talvez com uma garrafa de vinho e um maço de cigarros) como uma seleção particularmente “exótica” – e, no entanto, nenhum destes produtos é originário da Grã-Bretanha: a maioria nem sequer é originária da Europa. Enquanto os tomates, as batatas, o milho e o peru vinham do Novo para o Velho Mundo, o trigo, o arroz, a cevada, a aveia, as ovelhas, o gado e os porcos iam na direção oposta (a chamada “troca colombiana”). O prato “Fish and chips” deve a sua origem às Américas (batatas), a Espanha e Bélgica (batatas fritas), à imigração judaica de Portugal e Espanha via Holanda (peixe panado) e, mais tarde, à imigração da Europa do Leste (o primeiro proprietário de uma loja “fish and chips”).
A última grande era da globalização antes da atual terminou com a Primeira Guerra Mundial. Antes do conflito de 1914-18, era possível viajar por quase todos os países no mundo sem passaporte, bem como comercializar mercadorias em condições não discriminatórias. Já a era atual parece estar em decadência, em resultado da ameaça do Presidente Donald Trump e dos receios protecionistas que ele representa, do domínio do estado chinês na vida económica e, como em épocas passadas, do problema das doenças.
A Escola de Salamanca e o direito internacional
O expansionismo espanhol nas Américas foi um aspeto importante de uma das vagas da globalização. Tratava-se, evidentemente, de uma forma de imperialismo por parte de uma nação poderosa, e não uma interação e uma integração livres entre pessoas, empresas e estados soberanos. Mas foi importante por ter sido, de facto, a primeira vez que os teólogos começaram a debater-se com questões relacionadas com a organização de uma comunidade genuinamente global. A conceção da humanidade como uma república política e moral que abrange o mundo inteiro ganhou forma no berço intelectual Católico da primeira modernidade: a Escola de Salamanca.
Foi em Salamanca, no século XVI, que surgiram os primeiros indícios de uma teoria global do direito internacional, bem como os primórdios de uma noção de direitos humanos universais: “Todos os povos do mundo são humanos e só há uma definição de todos os humanos e de cada um deles, que é o facto de serem racionais… Logo, todas as raças da humanidade são uma só.”[6]
Esta afirmação pelo freire dominicano e missionário Bartolomeu de las Casas soa surpreendentemente moderna. Foi em Espanha que a moralidade (ou a imoralidade) das aventuras colonialistas foi objeto de debate intelectual público, e as disputas que tiveram lugar em Salamanca não têm parecença em qualquer outro sítio. A tarefa da Escola de Salamanca consistia em conciliar o tomismo com as realidades encontradas no Novo Mundo, bem como com o humanismo, protestantismo e a divisão religiosa na Europa. Como tal, Salamanca funcionava como uma ponte entre o pensamento medieval e o pensamento moderno. Como membros de uma Igreja universal, num império que reclamava um alcance universal, os teólogos de Salamanca tiveram de adaptar o seu quadro de referências para acomodar as realidades de um mundo subitamente muito maior. Acabariam por formular a conceção jurídica de um “totus orbis qui aliquo modo est una republica”, pela qual o mundo inteiro era concebido como uma república: uma única comunidade moral e política baseada, em última instância, na doutrina Cristã, mas principalmente na razão e no direito natural.
Em Salamanca, Francisco de Vitoria promoveu uma reviravolta jurídica. Nas suas lições sobre os “justos títulos” da conquista, habitualmente usados para justificar a sujeição do Novo Mundo, chegou a uma conclusão revolucionária: nem o Imperador nem o Papa podiam reivindicar autoridade espiritual ou temporal sobre o mundo inteiro, pois este era povoado por seres humanos que eram os “verdadeiros proprietários, quer na lei pública quer na lei privada,” das suas próprias terras e bens pessoais.[7] Ele também recusou que a Espanha (ou qualquer outra potência) tivesse alguma reivindicação ou título justo sobre as Índias (ou quaisquer outras terras) em resultado de um direito de descoberta, conquista, recusa dos nativos em aceitar o evangelho ou submissão dos seus governantes a um soberano conquistador, exceto com o consentimento do seu povo. Isto é importante. No pensamento social Católico, a globalização autêntica deve ser uma cooperação económica e social e um intercâmbio entre pessoas que têm a mesma dignidade e o mesmo direito à autodeterminação. Não deve ser imposta pela coerção e os povos não devem ser sujeitos a uma autoridade ilegítima de outros estados.[8]
A partir deste modo de pensar, desenvolveu-se a ideia de direito internacional que é aplicada em muitos domínios, incluindo na governação das relações comerciais que são uma característica da globalização, por exemplo, através da União Europeia e a Organização Mundial de Comércio. Estas questões de governança global são também proeminentes nos debates modernos sobre globalização no pensamento social Católico. Vitoria defendeu que o direito internacional não é apenas uma questão de tratados e alianças temporários, mas que deve assentar numa ordem universal baseada no direito natural ao serviço do bem comum. Como diz Vitoria:
O direito internacional não tem apenas a força de um pacto e acordo entre homens, mas também a força de uma lei; pois o mundo inteiro, sendo como um único estado, tem o poder de criar leis que sejam justas e adequadas para todas as pessoas, como são as regras do direito internacional. Nos assuntos mais importantes, não é admissível que um país recuse estar vinculado ao direito internacional, tendo este sido estabelecido pela autoridade do mundo inteiro.[9]
Para Vitoria, os direitos universais eram os de viajar, permanecer e comercializar em terras estrangeiras – o que podemos considerar como os três “pilares” da globalização contemporânea. A estes juntavam-se o direito de pregar o evangelho, o direito de proteger os batizados e o direito de depor um governador tirânico.
Entre os estudantes em Salamanca encontravam-se alguns que iriam para o Novo Mundo como missionários e que precisavam de ser treinados para ouvir as confissões. Questões relacionadas com transferência de propriedade em grande escala, exportações, empréstimos, monopólios, especulação de preços e empreendedorismo eram, de repente, questões reais que exigiam respostas reais, e não meros tópicos para disputas escolásticas. No confessionário, para os espanhóis católicos, as almas dependiam disso.
Os ensinamentos dos escolásticos de Salamanca são frequentemente vistos como uma justificação teológica para as ambições imperialistas da coroa espanhola. Embora tenham, em certa medida, fornecido essa base, estes ensinamentos também impunham limites a esses governantes em favor de uma visão mais geral da liberdade humana. Vitoria, Domingo de Soto e outros defenderem o direito do Imperador (Carlos V) e dos mercadores espanhóis de explorar o Novo Mundo e de se envolverem no comércio internacional, e fizeram-no no âmbito de uma teoria geral e global do comércio. No entanto, os mercadores espanhóis não necessitavam de autorização da coroa, uma vez que as trocas económicas se inscreviam numa teoria universal sobre o dominium, que era aplicável em todo o mundo. Por conseguinte, era tão aplicável aos Protestantes como aos Católicos, e também aos pagãos e aos Muçulmanos. Os negócios e o comércio eram protegidos pelo direito natural, que reconhecia a sociabilidade essencial ou a “parceria natural” dos seres humanos. Encontra-se aqui o início de uma Lex mercatoria global, pela qual a maior liberdade pertencia aos próprios comerciantes e não aos seus governantes.
A “globalização Católica” do século XVI estava rodeada de debates morais, jurídicos e políticos, que não tinham um corolário evidente no mundo protestante. Foi a Ibéria Católica a estabelecer, pela primeira vez, um sistema económico mundial. As potências protestantes que mais tarde alcançariam o domínio global e que terão sido as mais importantes na promoção da globalização do final do século XIX não criaram a globalização moderna inicial, mas inseriram-se num sistema pré-existente e aprenderam a lucrar com ele.
Globalização, Doutrina Social Católica e a família humana
Apesar destes desenvolvimentos no pensamento social Católico, a globalização não foi abordada diretamente nas principais fontes da Doutrina Social Católica moderna até há relativamente pouco tempo. As referências tendem a começar na década de 1960. O Papa João XXIII, por exemplo, escreveu em Pacem in terris (129):
Ao mesmo tempo, cresce a interdependência entre as economias nacionais. Estas entrosam-se gradualmente umas nas outras, quase como partes integrantes de uma única economia mundial.
O termo “globalização” aparece pela primeira vez numa encíclica social em Centesimus annus (58),[10] em 1991, embora de forma bastante hesitante. Até este momento e, na verdade, durante algum tempo depois, a abordagem à globalização na Doutrina Social Católica só podia ser extrapolada de modo tentado dos princípios mais gerais estabelecidos em encíclicas papais e documentos conciliares.
As primeiras encíclicas sociais ocupam-se, sobretudo, dos problemas sociais que as nações industrializadas e desenvolvidas enfrentavam. A Rerum novarum foi publicada numa altura em que se vivia um intenso período de globalização, mas sem lhe dedicar especial atenção. Em Mater et magistra (1961), o foco da preocupação alarga-se aos países em vias de desenvolvimento, ampliando-se depois em Populorum progressio (1967), Laborem exercens (1981) e, de forma mais notável, em Sollicitudo rei socialis (1987). É apenas após a queda do comunismo, no final da década de 1980, que a Centesimus annus (1991) começa a esboçar uma abordagem global às questões relativas a uma ordem mundial económica, social e politicamente justa.
A Doutrina Social Católica tem evoluído cada vez mais em direção a uma visão global dos problemas sociais e, ao mesmo tempo, para um apelo crescente à cooperação global. A Igreja está bem colocada para tratar do assunto da globalização na medida em que é, claramente, um ator global par excellence. Como se lê em Mater et magistra: “A Igreja, por direito divino, é universal. E também o é de facto, por estar presente, ou tender a estar presente, em todos os povos.” (177) O contributo da Igreja para os debates sobre globalização está relacionado com a sua missão de rezar e testemunhar a unidade fundamental da família humana em Cristo. O critério para julgar o “sucesso” da globalização é a medida em que ela contribui para promover a verdadeira unidade entre todos os povos e aprofundar a dignidade humana e o bem comum universal.
Esta unidade não é algo que possa ser forçado pelas armas, terror ou abuso de poder. Deve, antes, resultar daquele “supremo modelo de unidade, reflexo da vida íntima de Deus, uno em três Pessoas, [que] é o que nós cristãos designamos com a palavra «comunhão»” (Sollicitudo rei socialis, 40). A Igreja ensina que os povos tendem a unir-se não só por razões políticas e económicas, ou em nome de um “internacionalismo ideológico abstrato”, mas em resultado de uma decisão livre de cooperar e de uma compreensão “de serem membros vivos de uma comunidade mundial.” (Pacem in terris, 144)
Na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz, o Papa João Paulo II sublinhou repetidamente um princípio fundamental, mas simples, que pode orientar a nossa reflexão sobre a globalização – nomeadamente que “a humanidade, apesar de ferida pelo pecado, pelo ódio e pela violência, é chamada por Deus a formar uma única família”.[11] O tema principal é a paz, mas logo a seguir, o Papa salienta que:
Uma tal consciência pode proporcionar alma, sentido e orientação ao contexto mundial atual, caracterizado pelos dinamismos da globalização. Ainda que não isentos de riscos, tais dinamismos contêm oportunidades extraordinárias e promissoras que apontam precisamente para a meta referida, ou seja, para fazer da humanidade uma só família, fundada sobre os valores da justiça, da equidade, da solidariedade. (5)
Esta unidade fundamental é de caráter teológico, e esta visão teológica deve moldar, ou mesmo definir, a visão do mundo dos crentes, mesmo quando estes abordam questões técnicas da globalização.
Ao refletir sobre a globalização e os seus efeitos na unidade da família humana, a Doutrina Social da Igreja tende a ser formulada considerando o contexto do desenvolvimento e da preocupação de que grupos ou indivíduos não sejam excluídos do progresso social e económico. Por exemplo, quando a Centesimus annus aborda o tema da concorrência desleal e do monopólio do poder, fá-lo com preocupação pelos mais pobres da sociedade, em vez de se limitar a abordar os mecanismos do mercado:
Torna-se necessário quebrar as barreiras e os monopólios que deixam tantos povos à margem do progresso, e garantir, a todos os indivíduos e Nações, as condições basilares que lhes permitam participar no desenvolvimento. (35)
Este contexto mais amplo, no qual se deve julgar a “globalização económica”, é retomado em Ecclesia in America, exortação publicada após a Sessão Especial do Sínodo dos Bispos para a América do Norte e do Sul (1999). Neste documento, observa-se que:
[a]s repercussões do ponto de vista ético podem ser positivas ou negativas. Existe, certamente, uma globalização económica que traz em si algumas consequências positivas, tais como o fenómeno da eficiência e o aumento da produção e que, com o crescimento das relações entre os diversos países no âmbito económico, pode reforçar o processo da unidade dos povos e prestar um melhor serviço à família humana. Porém, se a globalização é dirigida pelas puras leis do mercado, aplicadas conforme a conveniência dos mais poderosos, as consequências só podem ser negativas. (20)
Uma série de documentos e declarações recentes do Papa Francisco fizeram eco destes sentimentos, mas também apresentam asserções definitivas sobre questões factuais. O Papa Francisco falou sobre o aumento das desigualdades, a nova pobreza e a exclusão. No documento de 2011, Towards Reforming the International Financial and Monetary Systems in the Context of Global Public Authority [Para uma reforma dos sistemas financeiros e monetários internacionais no contexto da autoridade pública mundial], afirma-se que as desigualdades entre os vários países aumentaram significativamente (1). É, naturalmente, razoável que os pastores recorram a hipérboles para chamar a atenção do público e ajudá-lo a concentrar-se num problema importante. Este é um recurso frequentemente usado pelo Papa Francisco, quer nos seus escritos, quer nos seus discursos.[12] Contudo, algumas afirmações que foram feitas sobre a desigualdade em várias cartas e documentos produzidos por departamentos ou comissões do Vaticano parecem ser factualmente incorretas pelo que, poder-se-ia argumentar, impedem uma deliberação prudente em questões económicas e culturais importantes.
Tendências económicas e globalização
Uma análise prudente das provas sugere que pelo menos algumas das preocupações expressas pela Igreja podem ser discutidas e que algumas afirmações em certos documentos da Igreja sobre assuntos factuais e empíricos podem ser questionadas. Se existe uma relação de causalidade é discutível, mas não há dúvida de que, durante o recente período de globalização, houve uma redução dramática da pobreza absoluta no mundo. Em 1820, mais do que 90 por cento da população do mundo vivia com menos de 1,90 dólares por dia (ajustado à inflação e diferenças no poder de compra). Por outras palavras, 90 por cento da população do mundo não tinha o suficiente para alimentos, abrigo, vestuário e outros bens essenciais. Este número diminuiu muito lentamente nas duas gerações seguintes e, em 1980, ainda estava ligeiramente abaixo dos 44 por cento. Mas, em 2019, apenas cerca de 7 por cento da população do mundo vivia abaixo da linha de pobreza absoluta. Por outras palavras, entre 1980 e 2019 foram feitos tantos progressos na redução da pobreza mundial como em toda a história económica mundial anterior. Em 1980, o número de pessoas que vivia em situação de pobreza no mundo começou a diminuir e, para além de uma ligeira quebra nessa década, a diminuição continuou sem interrupções. Esta foi a primeira vez em 200 anos que o número de pessoas em situação de pobreza extrema diminuiu.[13]
Para além disso, é também de salientar que estamos a viver o primeiro período da era moderna durante o qual a desigualdade global está a diminuir e é altamente provável que esta tendência se mantenha. As economias dos países ricos estão a estagnar (em parte devido à demografia e ao reduzido número de jovens), enquanto as dos países pobres estão a crescer. O aspeto mais importante da recente fase de globalização é o facto de os países anteriormente pobres terem começado a aproximar-se do mundo rico.[14]
Não foram apenas os indicadores de bem-estar económico e material que melhoraram, ainda que estes sejam muito importantes para os mais pobres do mundo. A percentagem da população mundial em idade de escolaridade primária que não frequenta a escola diminuiu de 28 por centro em 1970 para 9 por cento hoje. Os resultados no domínio da saúde também melhoraram drasticamente. No Uganda, por exemplo, o número de mulheres que morrem de causas relacionadas com a gravidez enquanto estão grávidas ou no prazo de 42 dias após o fim da gravidez por cada 100.000 nados-vivos diminuiu de 687 para 343 entre 1990 e 2015. É claro que a causa destas melhorias é controversa. No entanto, a forte relação entre resultados sociais e a eliminação da pobreza e a relação entre a redução da pobreza e o grau de participação dos países no processo de globalização sugere que esta é um fator importante.
Fratelli tutti reconheceu este progresso, mas com uma qualificação um pouco estranha:
Quando dizem que o mundo moderno reduziu a pobreza, fazem-no medindo-a com critérios doutros tempos não comparáveis à realidade atual. Pois noutros tempos, por exemplo, não ter acesso à energia elétrica não era considerado um sinal de pobreza nem causava grave incómodo. A pobreza sempre se analisa e compreende no contexto das possibilidades reais dum momento histórico concreto. (21)
É claro que, à primeira vista, isto é verdade. Contudo, se foram o progresso económico e a globalização que tornaram possível “a realidade atual”, parece estranho criticar (ou qualificar o elogio) esse sistema apenas por esse motivo.
Na sua doutrina social, a Igreja faz juízos sobre questões políticas e económicas, bem como sobre questões teológicas e morais, sendo que os primeiros têm menos autoridade dos que os segundos. Os juízos sobre questões políticas podem mudar ao longo do tempo à medida que as provas, os estudos e o contexto mudam. À luz das tendências referidas, não é, por isso, surpreendente que a doutrina da Igreja tenha mudado em relação ao que parecia ser uma posição cética sobre a globalização na década de 1960. Em Populorum progressio, por exemplo, afirmava-se que “uma economia de intercâmbio já não pode apoiar-se sobre a lei única da livre concorrência, que frequentemente leva à ditadura económica” (59) e exprimia-se um certo ceticismo em relação ao comércio entre países desenvolvidos e países pobres. No entanto, em 1991, Centesimus annus, João Paulo II escreveu:
Há relativamente poucos anos, afirmou-se que o desenvolvimento dos Países mais pobres dependeria do seu isolamento do mercado mundial, e da confiança apenas nas próprias forças. A recente experiência demonstrou que os Países que foram excluídos registaram estagnação e recessão, enquanto conheceram o desenvolvimento aqueles que conseguiram entrar na corrente geral de interligação das atividades económicas a nível internacional.
Embora afirmações mais recentes tenham tido a tendência de questionar ou criticar a globalização, de um modo geral há fortes argumentos para que a Igreja acolha a globalização económica. Para além disso, a ligação entre protecionismo e nacionalismo pode também sugerir que uma disposição favorável à globalização será mais apropriada.
Globalização: para além dos aspetos económicos
Há uma linha cautelosa a ser traçada entre oferecer uma doutrina profética sobre os desafios decorrentes dos desenvolvimentos económicos e sociais dos últimos trinta anos e não parecer que, nessa crítica, a Igreja está a rejeitar o enorme progresso que foi feito na redução da pobreza e da desigualdade e na promoção de melhores resultados na saúde e na educação. Contudo, e como aconteceu com o progresso industrial do século XIX, ainda que haja muito a saudar nas tendências económicas e sociais que decorrem da globalização, a Igreja abordará sempre os sinais dos tempos e os novos problemas a que as tendências económicas e sociais dão origem.
Apesar dos progressos recentes, há ainda um grande número de pessoas que vive vidas pobres ou insatisfeitas. Alguns diriam que o processo de globalização precisa de ser humanizado, domesticado ou governado a nível global para resolver este problema. Outros diriam que o desafio consiste em levar o desenvolvimento para as margens, removendo os obstáculos ao desenvolvimento que se encontram nos próprios países pobres – que podem incluir corrupção, má governação ou barreiras à entrada no mercado impostas por fortes interesses empresariais. Todos os católicos concordam que o desenvolvimento tem de ser promovido num ambiente de ética empresarial e de comportamento político ético, e muitos documentos da doutrina da Igreja refletem isso.
Os novos desenvolvimentos trazem também novos males e desafios. No caso da globalização, estes incluem a migração dos pobres e oprimidos para ambientes desconhecidos e o fenómeno do tráfico humano em larga escala.[15] O pensamento social Católico deve abordar estas questões e, ao fazê-lo, não se limita a comentar as estatísticas económicas. A Igreja tem-se interessado muito pelos problemas de corrupção, tráfico, migração forçada e tratamento de migrantes, quer prestando enorme apoio prático, quer trabalhando para melhorar o ambiente de políticas públicas que encorajam esses problemas. Em Evangelii gaudium, o Papa Francisco observou:
Sempre me angustiou a situação das pessoas que são objeto das diferentes formas de tráfico. Quem dera que se ouvisse o grito de Deus, perguntando a todos nós: «Onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9). Onde está o teu irmão escravo? Onde está o irmão que estás matando cada dia na pequena fábrica clandestina, na rede da prostituição, nas crianças usadas para a mendicidade, naquele que tem de trabalhar às escondidas porque não foi regularizado? Não nos façamos de distraídos! Há muita cumplicidade… A pergunta é para todos! Nas nossas cidades, está instalado este crime mafioso e aberrante, e muitos têm as mãos cheias de sangue devido a uma cómoda e muda cumplicidade. (211)
A Conferência Episcopal de Inglaterra e do País de Gales formou o Grupo Santa Marta, com o encorajamento do Papa Francisco, que se dedica a uma série de iniciativas para eliminar o tráfico de seres humanos.
A Igreja sublinha que o desenvolvimento que resulta da globalização deve ser baseado na ética. Com o aumento dos rendimentos nos países anteriormente mais pobres vem a necessidade de alertar para os estilos de vida que veem os bens de consumo como um fim em si mesmo, quando anteriormente tais avisos eram irrelevantes. Além disso, a globalização pode levantar questões sobre a cultura, nomeadamente até que ponto nos devemos preocupar com o facto de as culturas locais poderem ser prejudicadas pelo desenvolvimento de culturas globais mais uniformes. Como já vimos, o Papa Francisco alertou para este facto, mas o Papa João Paulo II também o fez:
A globalização não pode constituir um novo tipo de colonialismo. Pelo contrário, deve respeitar a diversidade das culturas que, no âmbito da harmonia universal dos povos, são as chaves interpretativas da vida. De forma especial, não deve privar os pobres daquilo que lhes resta de mais precioso, inclusivamente os credos e as práticas religiosas, porque as convicções religiosas genuínas constituem a manifestação mais clarividente da liberdade humana.[16]
Também existem questões de governação, especialmente relacionados com a adequação da governação global, que são abordadas no pensamento e na doutrina sociais Católicos.
O bem comum universal
Em muitos aspetos, a natureza global da Igreja combinada com o seu entendimento de que todas as pessoas humanas são feitas à imagem de Deus e partilham a mesma natureza, leva a que a globalização seja uma extensão natural das preocupações tradicionais da Doutrina Social Católica. Podemos passar facilmente do pensamento acerca das responsabilidades dos governos nacionais em relação ao bem comum para a ideia de bem comum global. Como é dito na Pacem in terris (138): “[c]omo o bem comum de cada comunidade política, assim também o bem comum universal não pode ser determinado senão tendo em conta a pessoa humana.” O mesmo princípio pode ser encontrado no Catecismo, que nota que:
As dependências humanas intensificam-se. Estendem-se, pouco a pouco, a toda a terra. A unidade da família humana, reunindo seres de igual dignidade natural, implica um bem comum universal. E este requer uma organização da comunidade das nações, capaz de «prover às diversas necessidades dos homens (…). (1911)[17]
Falar sobre um “bem comum global” baseia-se no princípio de que os direitos humanos são indivisíveis e universais, um tema abordado pela Escola de Salamanca. O Papa João Paulo II sublinhou este facto ao abordar a questão das violações dos direitos humanos resultantes de situações de exclusão e pobreza: “A nova arquitetura da economia em escala mundial deve basear-se sobre os fundamentos da dignidade e dos direitos da pessoa, sobretudo o direito ao trabalho e à proteção do trabalhador.”[18] No mesmo parágrafo, sublinha a importância dos direitos económicos e sociais, afirmando:
É necessário repelir toda a iniciativa de negar uma real consistência jurídica a estes direitos, e é preciso repetir que está empenhada a responsabilidade comum de todos os atores – poderes públicos, empresas, sociedade civil –, a fim de chegar ao seu exercício efetivo e pleno.
Isto implica que deve ser dada uma atenção especial à promoção do bem comum a nível internacional e que talvez sejam necessárias estruturas especiais. Mas esta é uma extensão natural das responsabilidades das instituições políticas e outras que têm sido discutidas na Doutrina Social Católica ao longo de vários séculos. É necessário aplicar princípios duradouros a novas situações.
O apelo da Doutrina Social Católica para a criação de estruturas multinacionais, transnacionais ou supranacionais, ou a melhoria das já existentes, por forma a promover o bem comum universal tem incomodado algumas pessoas por parecer estar em contradição com o princípio da subsidiariedade. Para os “anti-globalistas” parece um apelo para o governo mundial. Mas desde Pacem in terris que as sucessivas encíclicas têm alertado para o facto de as estruturas existentes para garantir o bem comum universal serem inadequadas. Duas secções da Pacem in terris, em particular, explicitam esta preocupação:
Pode-se, portanto, afirmar que na presente conjuntura histórica não se verifica uma correspondência satisfatória entre a estrutura política dos Estados com o respetivo funcionamento da autoridade pública no plano mundial, e as exigências objetivas do bem comum universal. (134)
O bem comum universal levanta hoje problemas de dimensão mundial que não podem ser enfrentados e resolvidos adequadamente senão por poderes públicos que possuam autoridade, estruturas e meios de idênticas proporções, isto é, de poderes públicos que estejam em condições de agir de modo eficiente no plano mundial. (136)
Em várias ocasiões, as encíclicas papais e outras declarações apelaram a um reforço das estruturas de governação existentes ou à criação de novas estruturas para regular a atividade económica global. Tais estruturas, evidentemente, já existem quer no domínio político, quer no domínio económico, e um desafio para a Doutrina Social Católica é promover uma forma de governação que fomente genuinamente o bem comum. Tais instituições podem ser tomadas por interesses hostis a um entendimento Cristão do bem comum, ou pode ser difícil responsabilizá-las ou limitar adequadamente as suas funções de acordo com o princípio de subsidiariedade.
O Papa João Paulo II aborda esta questão em Centesimus annus:
Mas é sentida uma necessidade cada vez maior de que a esta crescente internacionalização da economia correspondam válidos organismos internacionais de controlo e orientação que encaminhem a economia para o bem comum, já que nenhum Estado por si só, ainda que fosse o mais poderoso da terra, seria capaz de o fazer. Para poder conseguir tal resultado é necessário que cresça o entendimento entre os grandes Países, e que nos organismos internacionais sejam equitativamente representados os interesses da grande família humana. (58)
A ideia de governação internacional continua a ser um tema importante. Na encíclica social do Papa Bento XVI, Caritas in veritate, afirma-se:
Perante o crescimento incessante da interdependência mundial, sente-se imenso – mesmo no meio de uma recessão igualmente mundial – a urgência de uma reforma quer da Organização das Nações Unidas quer da arquitetura económica e financeira internacional, para que seja possível uma real concretização do conceito de família de nações. (67)
Na tradução inglesa, a parte final foi traduzida como “so that the concept of the family of nations can acquire real teeth” [para que o conceito de família das nações adquira uma verdadeira força] ao invés de “real concretização”, que aparece em outras traduções (como a portuguesa). É provável que essas traduções sejam mais autênticas – mas é de notar que há uma ênfase diferente.
Porém, o Papa Bento XVI advertiu que:
[o princípio da subsidiariedade é] particularmente idóneo para governar a globalização e orientá-la para um verdadeiro desenvolvimento humano. Para não se gerar um perigoso poder universal de tipo monocrático, o governo da globalização deve ser de tipo subsidiário. (57)
Em Fratelli tutti, o Papa Francisco refletiu esta doutrina prévia, mas também avisou para alguns dos perigos das instituições internacionais, pelo menos nas suas manifestações atuais.
Uma forma de compreender este desejo por instituições internacionais enquanto respeitamos o princípio de subsidiariedade consiste em limitar o seu âmbito de aplicação. Outra forma consiste em concentrar-se mais na cooperação entre instituições governamentais existentes do que na criação de novas instituições de caráter global. Ahner, por exemplo, defende que “as forças determinantes nas nossas vidas são verdadeiramente globais, mas as instituições de apoio que protegem e alimentam os valores humanos continuam a ser locais”, o que leva, na sua opinião, à necessidade de criar e desenvolver “instituições e associações de mediação que possam apoiar esta nova realidade global”.[19] Por outro lado, Coleman nota que “a mudança nas nossas realidades sociais e económicas ultrapassou a mudança nas instituições e processos políticos que outrora as enraizavam.”[20] E Hug adota uma perspetiva semelhante, defendendo especificamente que “as instituições de governação global são essenciais nesta fase do desenvolvimento humano, precisamente para proteger o bem comum onde as nações soberanas já não o conseguem fazer.”[21]
Desde a crise financeira que os documentos do Vaticano têm apelado cada mais para uma maior regulação internacional das finanças. Contudo, importa notar que existe, e existia na altura da crise financeira, um enorme leque de organizações internacionais com poderes económicos e políticos. A maior parte dos países afetados pela crise subscreveu o Acordo de Basileia, que estabelecia como os bancos eram regulados entre os signatários. É possível que este acordo tenha agravado a crise ao implementar erros de regulamentação num amplo número de países. De facto, o trabalho académico tem posto em causa a abordagem de criação de regimes regulatórios em níveis políticos mais elevados.[22]
A questão de saber exatamente o que deve significar na prática governação global exige um maior discernimento à medida que a Doutrina Social Católica evolui nesta área. Mas duas coisas podem ser ditas com certeza. Em primeiro lugar, o conceito de tribunais, tratados e organizações internacionais que restringem os estados-nação e exercem algum poder jurídico por forma a aplicar a justiça e os direitos humanos é totalmente coerente com a evolução da Doutrina Social Católica, dada a importância que esta atribui à universalidade dos direitos humanos. Em segundo lugar, deve reconhecer-se que as instituições internacionais podem ser difíceis de responsabilizar, podem ser capturadas por interesses que distorcem a sua missão legítima e podem mesmo ser hostis à Igreja e aos seus ensinamentos. E deve ficar claro que os apelos a novas formas de governação e autoridade política não equivalem a apoiar um “Governo Mundial Único”: o princípio da subsidiariedade impede-o.
Conclusão
O fenómeno que deu origem ao debate sobre a governação mundial – a globalização – trouxe imensos benefícios económicos. É possível que isso seja especialmente verdade para os menos favorecidos. Alguns podem recear o efeito que este aspeto teve nas culturas locais. Ao mesmo tempo, porém, as culturas podem ser enriquecidas pela cooperação com comunidades estrangeiras. E, embora possam existir preocupações legítimas com o afrouxamento dos laços locais como resultado da globalização, é difícil argumentar que o protecionismo é uma resposta legítima, dado que o protecionismo pode ser fruto e dar origem a uma hostilidade para com os nossos vizinhos globais. De facto, a Doutrina Social Católica, na medida em que reconhece o facto da globalização e os desafios que ela traz consigo, ao ponto de apelar a novas formas de governação global, deveria reconhecer que a globalização é a dinâmica oposta àquela que tem lugar quando há Balkanisation. A globalização relaciona-se com a disseminação da cooperação entre indivíduos, empresas, organizações da sociedade civil e governos e não com a imposição de uma normal global única a nível local. Um sistema ou uma empresa genuinamente global deve funcionar a nível global e a nível local. A Doutrina Social Católica precisa de considerar quais devem ser as funções e a autoridade dos diferentes níveis de governo.
Na minha opinião, os perigos de garantir a responsabilização e a complexidade de governar a nível internacional são tais que as funções das instituições internacionais de governação devem ser limitadas. Essas funções poderiam incluir a manutenção de paz; a aplicação de sistemas baseados em regras acordadas pelos governos (como as que existem no âmbito da Organização Mundial de Comércio); a garantia de que os direitos humanos que não são violados pelos governos nacionais (através de mecanismos como os tribunais para crimes de guerra); e a coordenação de soluções para problemas genuinamente globais, em que são necessários organismos que transcendem os governos nacionais.
Há sempre um equilíbrio a estabelecer entre subsidium e solidum. Ao defender novas formas de governação, o défice democrático da globalização deve ser equilibrado assegurando que as instituições existentes são reformadas e que as novas instituições são concebidas tendo em conta a transparência, a participação e a responsabilização. E é mais provável que isto aconteça se as suas funções forem adequadas. Como o Papa João Paulo II advertiu:
as unidades sociais mais pequenas, sejam elas nações, comunidades, grupos étnicos ou religiosos, famílias ou indivíduos, não devem ser absorvidas de maneira anónima num conglomerado maior, perdendo desse modo a própria identidade e vendo usurpadas as suas prerrogativas. Antes, a autonomia própria de toda a classe e organização social, cada uma na sua esfera, deve ser defendida e sustentada.[23]
O pensamento social católico não fornece um modelo para uma governação global, mas oferece princípios básicos para a governação em todos os níveis. A responsabilidade pela realização do bem comum pertence a todas as organizações da sociedade. A forma como essas organizações na esfera política devem ser estruturadas requer um julgamento prudente e mais discernimento. O debate sobre o Brexit, o papel da Organização Mundial de Saúde na crise da Covid-19 e o fracasso dos sistemas abrangentes de regulação financeira internacional na crise financeira de 2008 sugerem que esse discernimento é necessário por parte de quem está envolvido no desenvolvimento do pensamento e da doutrina sociais Católicos.
Referências
Ahner, G. (2007), Business Ethics: Making a Life, Not Just a Living, Maryknoll, N.Y.: Orbis.
Blake, E. e Knapp, A. B. (2005), The Archaeology of Mediterranean Prehistory, John Wiley & Sons.
Scott, J. B. (2007), The Catholic Conception of International Law, Clark, New Jersey: The LawBook Exchange.
Igreja Católica (1994), Catechism of the Catholic Church, London: Geoffrey Chapman.
Coleman, J. A. (2005), “Making the Connections: Globalization and Catholic Social Thought,” in Globalization and Catholic Social Thought: Present Crisis, Future Hope, Toronto: Novalis Press.
De Las Casas, B. (1992), A Short Account of the Destruction of the Indies, ed. N. Griffin, London: Penguin Books.
Hug, J. (2005), “Economic Justice and Globalization” in Globalization and Catholic Social Thought: Present Crisis, Future Hope, Toronto: Novalis Press.
Macaulay, T. B. (1856), The History of England from the Accession of James II, Volume I, London: Harper and Bros.
Romano, R. (2014), For Diversity in the International Regulation of Financial Institutions: Critiquing and Recalibrating the Basel Architecture, Yale Journal on Regulation 31(1): 1-76.
Smith, R. L. (2009), Premodern Trade in World History, London: Taylor & Francis.
Encíclicas papais e outros documentos da Igreja referidos neste capítulo
https://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/prima-pagina-cic_po.html
Francisco, 2020, Fratelli tutti, carta encíclica: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html
Francisco, 2013, Evangelii gaudium, exortação apostólica: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20131124_evangelii-gaudium.html
Pontifício Conselho «Justiça e Paz», 2011, Para uma reforma do sistema financeiro e monetário internacional na perspectiva de uma autoridade pública de competência universal: https://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/documents/rc_pc_justpeace_doc_20111024_nota_po.html
Bento XVI, 2009, Caritas in veritate, carta encíclica:
João Paulo II, 1999, Ecclesia in America, exortação apostólica, https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/apost_exhortations/documents/hf_jp-ii_exh_22011999_ecclesia-in-america.html
João Paulo II, 1991, Centesimus annus, carta encíclica: https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_01051991_centesimus-annus.html
João Paulo II, 1987, Sollicitudo rei socialis, carta encíclica:
João Paulo II, 1981, Laborem exercens, carta encíclica:
Paulo VI, 1967, Populorum progressio, carta encíclica:
https://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/encyclicals/documents/hf_p-vi_enc_26031967_populorum.html
João XXIII, 1963, Pacem in terris, carta encíclica:
João XXIII, 1961, Mater et magistra, carta encíclica:
Leão XIII, 1891, Rerum novarum, carta encíclica:
Perguntas para discussão
A globalização torna as culturas mais homogéneas ou enriquece-as – e isso é relevante?
Quem mais beneficiou da globalização do final do século XX e início do século XXI?
Qual é a relação entre a visão Católica dos direitos humanos e do bem comum e a globalização?
De que modo a Escola de Salamanca mostra que o cuidado pastoral e o discernimento ético andam de mãos dadas?
O que tem a Igreja Católica a dizer sobre a globalização no final do século XX e início do século XXI?
Notas de rodapé
[1] Audiência Geral de 8 de fevereiro, 2017: https://www.reuters.com/article/us-pope-wall-idUSKBN15N1ZW
[2] Entrevista ao jornal La Stampa, 15 de janeiro, 2015:
[3] Macaulay (1856), volume 1, p. 227.
[4] Smith (2009).
[5] Blake e Knapp (2005).
[6] De las Casas (1992), p.14.
[7] De las Casas (1992), p. 2.
[8] O que é exatamente considerado ilegítimo neste caso merece ser investigado, mas não será aprofundado. Por um lado, pode argumentar-se que o envolvimento da União Soviética e da China atual e, na verdade, algumas ações do governo dos Estados Unidos nos assuntos de outros estados podem ser considerados ilegítimos. Ao mesmo tempo, não devemos assumir que todas as intervenções de um estado nos assuntos de outro são ilegítimas.
[9] Brown Scott (2007), p. 490, De Potestate Civili, §21.
[10] A tradução portuguesa da encíclica opta, antes, pela expressão “mundialização”. (NT)
[11] Mensagem de Sua Santidade João Paulo II para a celebração do XXXIII Dia Mundial da Paz (2000) (2).
[12] Um exemplo particularmente bom deste facto encontra-se na Laudato si (15), em que o Papa Francisco afirma: ” A terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo.”. Isto é uma distorção dos factos, uma vez que muitos indicadores ambientais estão a melhorar na maior parte do mundo. No entanto, em certas partes do mundo isto é verdade, e trata-se de um recurso retórico eficaz e legítimo para chamar a atenção do público para o problema.
[13] Infelizmente, esta tendência pode ser quebrada em resultado da crise Covid-19.
[14] O site Our World in Data é uma excelente fonte de informação objetiva sobre estes temas.
[15] Embora alguns destes problemas também fossem pré-existentes, tendo-se tornado mais conhecidos.
[16] Discurso do Santo Padre aos membros da Pontifícia Academia das Ciências Sociais (27 de abril de 2001) (4).
[17] Igreja Católica (1994).
[18] Discurso do Papa João Paulo II aos participantes no Congresso Mundial sobre a Pastoral dos Direitos Humanos (4 de julho de 1998) (4).
[19] Ahner (2007), p. 1.
[20] Coleman (2005), p. 14.
[21] Hug (2005), p. 65.
[22] Ver, por exemplo, Romano (2014).
[23] Mensagem do Papa João Paulo II aos participantes da VI Sessão Plenária da Pontifícia Academia das ciências sociais (23 de fevereiro de 2000) (4).