Unidade de curso online 5

O ambiente, a Doutrina Social da Igreja e as políticas públicas

Philip BoothSOBRE O AUTOR

Introdução

A publicação da Laudato si em 2015 foi saudada como um marco por muitos na Igreja Católica e não só. De facto, foi a primeira encíclica social a focar-se no ambiente. No entanto, uma análise aos ensinamentos da Igreja sobre o ambiente irá demonstrar que existe uma continuidade notável no que diz respeito a este tópico.

A primeira parte deste capítulo irá focar-se na continuidade dos ensinamentos da Igreja sobre o ambiente. A segunda parte irá responder ao apelo do Papa Francisco ao diálogo e a discussão da Laudato si será feita nesse espírito. A análise será definida no contexto tanto dos desenvolvimentos sobre a economia como dos primórdios do pensamento social Católico sobre assuntos que podem não parecer relacionados com o ambiente, mas que estão, de facto, intimamente ligados. Espera-se que, ao contribuir para o diálogo, e respondendo ao desafio da encíclica, possamos melhorar a contribuição Católica para a discussão das questões de políticas públicas nesta área.

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Laudato si: continuidade com os ensinamentos da Igreja

Quando uma encíclica social papal é produzida, os meios de comunicação tendem a percorrer o documento em busca por declarações sobre política e sobre políticas públicas[2]. Ao fazê-lo, tendem a olhar para o documento com uma perspetiva secular. É claro que declarações sobre questões de políticas públicas são importantes, mas ainda mais importante numa encíclica social é a forma como a Doutrina Social da Igreja enquadra as questões de um ponto de vista teológico, filosófico e antropológico. A Laudato si é um bom exemplo disto. Este documento continha uma importante discussão sobre a nossa relação com o ambiente natural que era consistente com anteriores ensinamentos Católicos e com o entendimento da Igreja Católica sobre a lei natural.

A Laudato si começa por refletir sobre o dano que temos infligido na terra. O Papa Francisco descreve o ambiente natural como uma “irmã” e relembra-nos que os nossos corpos são feitos dos elementos da terra e que respiramos e bebemos os produtos da terra. Por outras palavras, temos uma relação com a terra que é intrínseca. Devíamos acarinha-la e nutri-la, em vez de a explorar violentamente.

No parágrafo 33, o Papa Francisco observa que as diferentes espécies não são meros recursos a serem explorados, mas têm também valor em si mesmos porque são criaturas criadas. É claro que têm um valor inferior ao de uma pessoa humana, mas têm valor. Considerar estas perceções deveria ajudar-nos a compreender como uma vida corretamente ordenada trataria a terra, o ambiente natural e as outras criaturas.

Citando São Tomás de Aquino, a Laudato si nota que foi através da intenção do Criador que surgiu toda a variedade de criaturas que vemos na terra:

“São Tomás de Aquino sublinhava, sabiamente, que a multiplicidade e a variedade «provêm da intenção do primeiro agente», o Qual quis que «o que falta a cada coisa, para representar a bondade divina, seja suprido pelas outras», pois a sua bondade «não pode ser convenientemente representada por uma só criatura». Por isso, precisamos de individuar a variedade das coisas nas suas múltiplas relações. Assim, compreende-se melhor a importância e o significado de qualquer criatura, se a contemplarmos no conjunto do plano de Deus.” (86)

Referindo-se novamente a São Tomás[3], o Papa Francisco salienta que somos mais íntegros como pessoas se compreendermos a nossa relação adequada com o resto da criação:

“O mundo, criado segundo o modelo divino, é uma trama de relações. As criaturas tendem para Deus; e é próprio de cada ser vivo tender, por sua vez, para outra realidade (…). Isto convida-nos não só a admirar os múltiplos vínculos que existem entre as criaturas, mas leva-nos também a descobrir uma chave da nossa própria realização. Na verdade, a pessoa humana cresce, amadurece e santifica-se tanto mais, quanto mais se relaciona, sai de si mesma para viver em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas.” (240)

Para além de ser consistente com os ensinamentos Tomistas e com a lei natural, a encíclica é também consistente com os ensinamentos modernos da Igreja sobre o ambiente. Talvez o primeiro documento publicado pela Igreja Católica que aborda os problemas ecológicos modernos tenha sido a Octogesima adveniens publicada em 1971. O Papa Paulo VI advertiu que corríamos o risco de destruir a natureza e de nos tornarmos então vítimas da sua degradação. Ele refere-se à poluição, aos resíduos e à capacidade destrutiva absoluta da raça humana que estava a criar um ambiente que poderia muito bem tornar-se intolerável (21).

O sucessor de Paulo VI, João Paulo II, levantou a questão do ambiente na sua primeira encíclica, Redemptor hominis. Particularmente, desenvolveu conhecimentos antropológicos e filosóficos importantes ao afirmar:

“E o homem parece muitas vezes não dar-se conta de outros significados do seu ambiente natural, para além daqueles somente que servem para os fins de um uso ou consumo imediatos. Quando, ao contrário, era vontade do Criador que o homem comunicasse com a natureza como «senhor» e «guarda» inteligente e nobre, e não como um «desfrutador» e «destrutor» sem respeito algum.” (15)

Esta crítica ao consumo por si só é um tema comum às encíclicas de João Paulo II. A importância de sermos tanto mestres como guardiões do ambiente emerge da nossa natureza como pessoas humanas capazes de raciocinar, enquanto assumimos a responsabilidade pela criação.

O Papa João Paulo II salientou que a própria vida é um dom que deve ser respeitado. Por isso, juntou-se àquilo a que o Papa Bento XVI chamou “ecologia moral” com a necessidade de respeitar o ambiente. Por outras palavras, não faz sentido rebaixar a pessoa humana e não estar aberto à transmissão da vida e disposto a protegê-la desde a sua conceção até à morte natural, ao mesmo tempo que pretende preocupar-se com outros aspetos do ambiente natural. A este respeito, deveríamos ter em atenção os falsos movimentos verdes que veem o ambiente de forma incompleta e que parecem esquecer-se do elemento humano.

O Papa João Paulo II voltou a relacionar as questões ambientais com o problema do consumismo excessivo e com os perigos de “ter” em vez de “ser” na sua encíclica Sollicitudo rei socialis. Curiosamente, fê-lo de uma forma ligeiramente positiva escrevendo:

“Entre os sinais positivos do tempo presente é preciso registar, ainda, uma maior consciência dos limites dos recursos disponíveis e da necessidade de respeitar a integridade e os ritmos da natureza e de os ter em conta na programação do desenvolvimento, em vez de os sacrificar a certas concepções demagógicas do mesmo. É, afinal, aquilo a que se chama hoje preocupação ecológica.” (26)

E o antecessor imediato do Papa Francisco, Bento XVI, referiu-se às preocupações ambientais em inúmeras homilias e declarações escritas, bem como na sua encíclica social Caritas in veritate. Nesse documento escreveu:

“O tema do desenvolvimento aparece, hoje, estreitamente associado também com os deveres que nascem do relacionamento do homem com o ambiente natural. Este foi dado por Deus a todos, constituindo o seu uso uma responsabilidade que temos para com os pobres, as gerações futuras e a humanidade inteira. Quando a natureza, a começar pelo ser humano, é considerada como fruto do acaso ou do determinismo evolutivo, a noção da referida responsabilidade debilita-se nas consciências. Na natureza, o crente reconhece o resultado maravilhoso da intervenção criadora de Deus, de que o homem se pode responsavelmente servir para satisfazer as suas legítimas exigências — materiais e imateriais — no respeito dos equilíbrios intrínsecos da própria criação.” (48)

Isto levanta a questão da gestão, mas também a questão de a nossa preocupação com o ambiente dever resultar do facto de ser criação de Deus e por isso nos dever interessar. É um dom: é um dom para usarmos de forma criativa para nosso benefício. Mas, tal como todos os dons, não devemos abusar dele. O Papa Francisco também aborda esta questão em específico no seu tratamento teológico da ecologia.

Nas reflexões teológicas na Laudato si, o Papa Francisco levanta muitos temas semelhantes àqueles levantados pelos seus predecessores. No parágrafo 67 da Laudato si explica como o facto de os homens terem “domínio” sobre a terra não significa que devamos ser dominantes e destruidores, mas que devemos antes cultivar a terra. A encíclica afirma ainda que, dotados de inteligência, devemos respeitar as leis da natureza e usa os salmos e outros livros da Bíblia para reforçar este ponto.

Embora enfatizando que o homem é superior a todas as outras criaturas, o documento cita o Catecismo que resume a realidade cristã que

“Cada criatura possui a sua bondade e perfeição próprias (…). As diferentes criaturas, queridas pelo seu próprio ser, reflectem, cada qual a seu modo, uma centelha da sabedoria e da bondade infinitas de Deus. É por isso que o homem deve respeitar a bondade própria de cada criatura, para evitar o uso desordenado das coisas (…).” (Laudato si 69 e Catecismo da Igreja Católica[4], 339)

A Laudato si não se afasta dos ensinamentos dos antecessores do Papa Francisco sobre o tratamento fundamental da teologia do ambiente. Há uma continuidade nos ensinamentos da Igreja que seria de esperar. Há também um forte elemento de direito natural na Laudato si. É evidente que a escrita do Papa Francisco se baseia na ideia inicial de como as pessoas humanas, como seres criados, devem ordenar as suas vidas em relação à criação de Deus.

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Da teoria à prática – solidariedade e justiça distributiva

Tal como com todas as encíclicas sociais, a Laudato si não foi simplesmente uma discussão de teoria. Havia apelos à ação, tanto a nível individual como a nível das políticas do governo. Havia também um apelo ao diálogo[5]. Isto é importante. A Doutrina Social da Igreja em questões específicas depende frequentemente do tempo e do espaço, especialmente em relação a detalhes práticos. O seu desenvolvimento baseia-se na virtude da prudência, que requer deliberação, e é frequentemente informado por outras disciplinas. De facto, as Conferências Episcopais de todo o mundo deram um contributo ao documento.

A Laudato si deixou uma nota muito pessimista sobre as alterações climáticas em geral e sobre o seu impacto no mundo pobre em particular. O Papa Francisco afirmou:

“Há um consenso científico muito consistente, indicando que estamos perante um preocupante aquecimento do sistema climático. Nas últimas décadas, este aquecimento foi acompanhado por uma elevação constante do nível do mar, sendo difícil não o relacionar ainda com o aumento de acontecimentos meteorológicos extremos, embora não se possa atribuir uma causa cientificamente determinada a cada fenómeno particular.” (23)

Apesar das críticas de alguns quadrantes, esta afirmação é difícil de contestar. Alguns argumentariam que o consenso científico está errado, mas esta é uma descrição exata desse consenso.

O Papa Francisco vê isto, e outras questões ambientais, como assuntos de justiça intergeracional, um assunto que ocupa toda uma secção da encíclica.

De facto, não há dúvida de que a justiça distributiva e a solidariedade são relevantes para os problemas ambientais. A solidariedade é a virtude pela qual nos comprometemos a trabalhar pelo bem comum. Se, como resultado do consumo excessivo, os recursos ambientais são destruídos e, consequentemente, as gerações futuras forem incapazes de obter uma vida digna, isso mina o bem comum. A justiça distributiva é aquela forma de justiça pela qual os bens deste mundo são divididos de acordo com critérios apropriados. Não há tratamento sistemático de como isto se pode relacionar com as gerações futuras na Doutrina Social da Igreja. No entanto, parece claro que não há aplicação deste princípio que conclua que é justo que uma geração enriqueça de tal forma que isso imponha custos às gerações futuras sem conferir qualquer benefício equivalente. Ou como a Laudato si exprime: “Não estamos a falar duma atitude opcional, mas duma questão essencial de justiça, pois a terra que recebemos pertence também àqueles que hão-de vir” (159). É claro que devemos usufruir dos frutos da terra. Contudo, devemos ser contidos ao usufruir deles, para que as gerações futuras possam obter o que é seu por justiça.

Também este caso não constitui uma inovação nos ensinamentos da Igreja. Na sua mensagem do Dia Mundial da Paz em 2010, o Papa Bento XVI escreveu: “é urgente a obtenção de uma leal solidariedade entre as gerações. Os custos resultantes do uso dos recursos ambientais comuns não podem ficar a cargo das gerações futuras” (8; ênfase no original). E, de forma menos específica, o Compêndio da Doutrina Social da Igreja já tinha afirmado: “A responsabilidade em relação o ao ambiente, patrimônio comum do gênero humano, se estende não apenas às exigências do presente, mas também às do futuro: «Herdeiros das gerações passadas e beneficiários do trabalho dos nossos contemporâneos, temos obrigações para com todos, e não podemos desinteressar-nos dos que virão depois de nós aumentar o círculo da família humana” (467; ênfase no original)[6].

Outra forma de as questões ambientais poderem ser associadas à justiça distributiva, à solidariedade e ao bem comum é sugerida pelo Papa Francisco relativamente aos danos ambientais nos países pobres causados por ações nos países ricos. A Laudato si relaciona isto tanto com a utilização dos recursos naturais como com o impacto do aquecimento global que, de acordo com o Papa Francisco, é em grande parte causado pelo consumo excessivo nos países mais ricos, enquanto muitos dos impactos são sentidos pelos países mais pobres. Isto é descrito como uma “dívida ecológica” (51).

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Preocupações políticas práticas

Alguns criticaram o Papa Francisco por ter tomado uma posição sobre as questões ambientais, especialmente sobre as alterações climáticas. É verdade que é legítimo que os Católicos assumam diferentes posições sobre a economia, sobre a política e sobre a ciência das questões ambientais, incluindo as alterações climáticas: o desacordo e o diálogo sobre questões sensíveis devem ser encorajados. No entanto, é também razoável que a Igreja, nas suas encíclicas sociais, aplique o que considera ser o melhor das ciências físicas e sociais e combine isso com filosofia e teologia para fazer declarações que envolvam julgamentos providentes. Tais julgamentos podem depois variar ao longo do tempo, ou pelo menos a ênfase pode mudar[7]. Tal como Charles (1998, volume II, pág. 15) afirma, a autoridade magisterial das encíclicas estende-se apenas a questões de princípio moral e às suas implicações e nessas matérias deve vincular a consciência dos membros da Igreja. Questões práticas e outras relacionadas, de acordo com Charles, podem ser julgadas com base nos argumentos apresentados[8]. É neste espírito e em resposta ao apelo do Papa Francisco ao diálogo que o resto do capítulo irá propor algumas perspetivas adicionais sobre os temas levantados na Laudato si.

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A propriedade privada e o ambiente[9]

O conceito de propriedade privada tem sido importante desde sempre no pensamento social Católico. Existe uma disputa legítima sobre o seu lugar no pensamento dos primórdios da Igreja[10], contudo tanto no pensamento de São Tomás de Aquino como no da escolástica tardia não existem dúvidas sobre a importância da propriedade privada para a promoção do bem comum[11]. Na encíclica do Papa Leão XIII, Rerum novarum, a importância da propriedade privada foi mencionada repetidamente. A propriedade privada estava ligada ao trabalho e à responsabilidade: seria mais provável que as pessoas cultivassem o que possuíam e seria mais provável que trabalhassem se pudessem manter algum do seu salário em forma de propriedade. E se a posse de propriedade fosse clara, seria mais provável que as pessoas se responsabilizassem por ela. Na Laborem exercens (12), o Papa João Paulo II sugeriu que é através da posse de várias riquezas da natureza, incluindo o mar, a terra ou o espaço, que somos capazes de, através do trabalho, cultivar o mundo natural e de o fazer dar frutos.

No entanto, a Doutrina Social da Igreja tem enfatizado que o princípio da propriedade privada tem de estar subordinado à promoção do bem comum e tem sido levantada a questão de saber se a propriedade privada pode minar a proteção do ambiente.

A Laudato si discutiu o assunto dos direitos de propriedade privada nos parágrafos 93 a 95. Ao fazê-lo, repetiu as conclusões da Sollicitudo rei socialis e da Centesimus annus e deu a entender que os direitos de propriedade privada eram problemáticos na promoção do bem comum no que diz respeito aos recursos ambientais, em vez de úteis. A encíclica mais recente, Fratelli Tutti, publicada em 2020, sublinhou de forma tão enfática que os direitos de propriedade privada estavam subordinados a outros princípios da Doutrina Social da Igreja que muitos comentadores ficaram com a firme impressão de que o Papa Francisco estava a atacar a instituição da propriedade privada.

Na Centesimus annus, o Papa João Paulo II levanta especificamente o que descreve como a “questão ecológica” em relação à propriedade privada (37). Então sugere que “é tarefa do Estado prover à defesa e tutela de certos bens colectivos como o ambiente natural e o ambiente humano, cuja salvaguarda não pode ser garantida por simples mecanismos de mercado” (40). Ao fazê-lo, parece estar a pôr em causa a capacidade da propriedade privada em proteger o ambiente. A Laudato si reitera esta afirmação e continua a discussão sobre a propriedade privada e sobre a proteção do ambiente com uma ênfase negativa. O Papa Francisco diz que a tradição Cristã nunca reconheceu os direitos de propriedade como absolutos ou invioláveis e que eles têm de estar subordinados a um propósito social. Especificamente, diz: “o meio ambiente é um bem colectivo, património de toda a humanidade e responsabilidade de todos. Quem possui uma parte é apenas para a administrar em benefício de todos” (95).

A Laudato si prossegue e não aborda o assunto novamente. Assim, o Papa Francisco deixa por considerar a questão: “serão os direitos de propriedade privada a melhor forma de lidar com a proteção do ambiente natural para o bem de todos?”. Esta é a questão crucial.

No período entre a publicação da Sollicitudo rei socialis e da Laudato si houve uma enorme quantidade de trabalho feito sobre a importância dos direitos de propriedade para a conservação ambiental. Curiosamente, isto confirma a posição geral da Igreja sobre a importância dos direitos de propriedade para a promoção do bem comum.

Poderíamos comparar a afirmação na Laudato si: “o ambiente natural é um bem coletivo, o património de toda a humanidade e a responsabilidade de todos” com uma das justificações para a propriedade privada sugerida por São Tomás de Aquino. Ele afirmou que os assuntos humanos são organizados de forma mais eficiente se cada pessoa tiver a sua própria responsabilidade a desempenhar e que haveria caos se toda a gente cuidasse de tudo[12]. A Rerum Novarum (7-9) também explicou como as pessoas cultivam aquilo que possuem para que seja sustentável e para que proporcione sustento para o futuro. Isto é confirmado pelo trabalho económico moderno. A ausência de direitos de propriedade nos recursos ambientais leva a uma situação na qual o ambiente não é da responsabilidade de ninguém e na qual as pessoas não suportam os custos de destruição, ao mesmo tempo que não obtêm qualquer benefício por cuidarem do ambiente. Por outro lado, os direitos de propriedade privada podem resultar numa gestão eficaz.

A importância da propriedade para a promoção da conservação ambiental é ilustrada pela ideia da ‘tragédia dos comuns’. Esta ideia é frequentemente atribuída a Garrett Hardin no seguimento da publicação de um artigo com esse título na revista Science (Hardin, 1968). O trabalho original foi um panfleto pelo economista William Forster Lloyd onde se descrevia uma situação na qual a terra comum era aberta ao pastoreio por todos. A terra seria pastoreada em excesso porque uma pessoa teria o benefício de lá colocar mais gado sem suportar os custos que resultariam do pastoreio em excesso que seriam partilhados por todos. No final, a terra comum seria destruída.

Um exemplo ainda mais claro são os recursos piscatórios. Uma traineira que apanhe atum a mais do oceano irá beneficiar, mas os maiores custos de ter apanhado o atum em excesso em termos de níveis menores de reprodução será partilhado entre todos os que possuam uma traineira a muito longo prazo. Na prática, os exemplos de comercialização de direitos de pesca e de posse privada, tal como na Islândia, resultaram em zonas de pesca prósperas (ver, por exemplo, Gissurarson, 2015); já a definição pouco clara de direitos de pesca resultou na devastação das zonas de pesca[13].

Se um recurso ambiental for de posse privada, o proprietário tanto suporta os custos como beneficia dos ganhos da sobre-exploração. Isto não quer dizer que todos os recursos ambientais que são de posse privada serão sempre geridos de forma sustentável ou que os direitos de propriedade privada são a única forma de lidar com estes problemas: a regulação estatal também pode ser usada. Todavia, a regulação estatal de todos os recursos ambientais, tal como campos, mares e florestas, seria impraticável e nem sempre tem dado bons resultados. Certamente, a propriedade privada e a aplicação e a proteção dos direitos de propriedade são compatíveis com a conservação ambiental. A área específica da privatização dos recursos hídricos é discutida no anexo.

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Boa governação, o estado de direito e os resultados ambientais

Apesar de a propriedade privada dos recursos ambientais ser consistente com a promoção do bem comum, podem existir circunstâncias nas quais a propriedade pelo estado ou a regulação são opções mais práticas quer a nível local quer nacional. Independentemente de ser adotada a propriedade privada ou pelo estado, é fundamental que a governação seja boa e que os direitos de propriedade sejam aplicados efetivamente através de sistemas legais não-corruptos.

O problema da corrução é mencionado várias vezes na Laudato si, por exemplo:

“Muitas vezes, a própria política é responsável pelo seu descrédito, devido à corrupção e à falta de boas políticas públicas. Se o Estado não cumpre o seu papel numa região, alguns grupos económicos podem-se apresentar como benfeitores e apropriar-se do poder real, sentindo-se autorizados a não observar certas normas até se chegar às diferentes formas de criminalidade organizada, tráfico de pessoas, narcotráfico e violência muito difícil de erradicar.” (197)

A corrupção é problemática para os resultados ambientais. É fácil perceber porquê. A corrupção pode, por exemplo, levar a que sejam pagos subornos às autoridades governamentais em troca de permissão para abusar dos recursos ambientais ou ao pagamento de subornos aos que aplicam a lei ou ao sistema judicial para impedir ações judiciais bem-sucedidas. Estima-se que “quase metade (49%) da desflorestação tropical total entre 2000 e 2012 foi devida à conversão ilegal para a agricultura comercial” (Lawson, 2014, pág. 2). Sundstrom (2016) sugere que as evidencias académicas mostram que os subornos são uma forma de abrir as portas para as atividades ilegais na gestão da florestal[14].

O problema, no entanto, não é apenas a relação direta entre os subornos e a destruição ambiental, como pode acontecer quando uma empresa suborna as agências que aplicam a lei para ignorar o abate ilegal de árvores. A boa governação é mais importante de forma mais geral. Um exemplo interessante é dado pela diferença entre o Haiti e a República Dominicana, que partilham uma ilha. Fotografias da zona da fronteira revelam um forte contraste entre o lado do Haiti e o lado da República Dominicana[15].

Tal como as Nações Unidas referem, “a degradação ambiental nas partes mais afetadas da fronteira do Haiti é quase totalmente irreversível, devido a uma perda quase total da cobertura de vegetação e do solo superficial produtivo em vastas áreas” (United Nations Environment Program 2013, 6). O Haiti tem cerca de 4% de cobertura florestal, um número que está em queda. Em contraste, a República Dominicana tem cerca de 40%, um número que tem aumentado significativamente ao longo dos últimos 20 anos[16].

Com efeito, o lado da fronteira do Haiti é um espaço comum enorme, sem governação e sem propriedade privada. O Haiti tem sido, durante grande parte do seu passado recente, um Estado falhado. É considerado o 12º estado mais frágil pelo Foreign Policy Fragile State Index de 2019[17] e tem um registo terrível de corrupção (está em 173º lugar de um total de 183 países no Transparency International Corruption Perception Index)[18]. Em relação ao Haiti, o Índice de Liberdade Económica da Heritage de 2019 afirma que “os títulos de propriedade bona fide são frequentemente inexistentes”[19].

O Haiti e a República Dominicana são um contraste particularmente interessante devido à proximidade entre si. Contudo, existe evidência abundante que prova que as lições deste exemplo podem ser generalizadas. Por exemplo, Araújo et al (2009) defende que “direitos de propriedade da terra incertos conduzem à desflorestação na Amazónia brasileira”. Os autores demonstram uma relação causal que surge através de vários canais. Os seus resultados são sólidos e conduzem à conclusão de que uma escalada exógena na insegurança dos direitos de propriedade traz um aumento significativo na taxa de desflorestação.

A economia moderna desta questão é apenas uma reafirmação daquilo que São Tomás de Aquino refere e daquilo que referimos sobre a água. A propriedade privada e as instituições que a rodeiam geram incentivos à sustentabilidade. O valor de um pedaço de terra num dado momento reflete o valor de tudo o que pode ser produzido a partir da terra num futuro indefinido. O custo de danificar os recursos é enorme porque está relacionado com todas as possíveis perdas de produção futuras e não apenas com a produção do próximo ano ou dois. No entanto, as pessoas não cuidarão da propriedade de forma sustentável se acreditarem que será poluída e pilhada por outros.

A propriedade privada e sistemas judiciais não-corruptos não são o único aspeto da boa governação que importa. Os conflitos civis e a guerra podem também conduzir à destruição direta do ambiente e à sua pilhagem para propósitos de curto-prazo e não são compatíveis com a gestão ambiental. Os projetos de reabilitação em Moçambique demonstram como um número de diferentes soluções de governação e de direitos de propriedade conseguiram restaurar alguma da devastação ambiental causada por guerras anteriores[20]. Mas é de notar que a destruição da vida selvagem surgiu, em primeiro lugar, como resultado de uma guerra que atropelou os direitos de propriedade estabelecidos.

Vale a pena referir que, apesar do tom pessimista da Laudato si, a taxa de desflorestação abrandou drasticamente nos últimos anos em cerca de 0,1% do total de cada ano. Analisando mais atentamente esta tendência, existe uma forte relação entre a regeneração florestal líquida e tanto os rendimentos como as medidas de governação e proteção dos direitos de propriedade. Por exemplo, nenhum país dos que surge no top dez do Índice de Liberdade Económica da Heritage Foundation e do Wall Street Journal regista perdas florestais líquidas e apenas dois países dos que se encontram nos últimos dez lugares desse índice têm ganhos florestais líquidos. Estas questões de boa governação, de estado de direito e da proteção da propriedade privada, que têm surgido noutras discussões da Doutrina Social da Igreja ao longo da história, devem ser consideradas especialmente importantes onde a Doutrina Social da Igreja está a informar a reflexão sobre as estruturas políticas que melhor promovem o bem comum no que diz respeito ao ambiente.

Neste contexto, uma abordagem à gestão ambiental que tem demonstrado ser particularmente bem-sucedida em alguns contextos institucionais e que é especialmente congruente com a Doutrina Social da Igreja é a gestão dos recursos naturais pela comunidade.

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A gestão pela comunidade dos recursos ambientais

Os direitos de propriedade são muitas vezes altamente complexos ou informais, especialmente em países pobres. Tem havido um grande trabalho sobre direitos de propriedade baseados na comunidade e sobre problemas ambientais. O nome mais importante nesta área é o de Elinor Ostrom que ganhou o Prémio Nobel da Economia em 2009 pelo seu trabalho antropológico nesta área. Este trabalho é amplamente reconhecido em todo o espetro político.

Ela defendeu que as comunidades desenvolvem métodos de controlo da utilização de recursos ambientais – das florestas e dos mares em particular – que são notavelmente estáveis e eficazes e fazem-no de baixo para cima. As comunidades desenvolvem os seus próprios sistemas de fiscalização e o principal papel do governo é apoiar estes sistemas em vez de os assumir. Por outras palavras, em linha com a Doutrina Social da Igreja, os governos desempenham um papel subsidiário ao ajudar a comunidade a gerir os recursos, por exemplo, fornecendo informações que ajudam na aplicação da lei. Os princípios de Ostrom incluem (ver Ostrom, 2009 e Ostrom, 2012):

  • Devem existir fronteiras claras e compreendidas localmente entre os utilizadores legítimos e os não-utilizadores. Isto implica claramente alguma forma de direitos de propriedade privada (ou pelo menos direitos de exclusão), mesmo que esses direitos de propriedade pertençam informalmente à comunidade e não sejam individualizados.
  • Deve existir congruência com condições locais sociais e ambientais – ou seja, os métodos de gerir recursos ambientais como os mares e as florestas devem ter em consideração as culturas e circunstâncias específicas.
  • Os direitos dos utilizadores locais para fazerem as suas próprias regras são reconhecidos pelo governo.

O trabalho de Ostrom é largamente empírico. Ela demonstra que os recursos naturais que são geridos pela comunidade, como as florestas e os mares, têm melhores resultados do ponto de vista da sustentabilidade do que onde existem sistemas geridos pelo governo ou direitos de propriedade privada individualizados. A sua abordagem está em linha com a Doutrina Social da Igreja, quando refere que a propriedade privada atribui claramente responsabilidades para que as pessoas saibam quem é responsável pelo quê. Neste caso, a gestão pela comunidade também garante que os conflitos são geridos de forma pacífica e gera incentivos à gestão sustentável dos recursos porque os membros da comunidade, que controlam o acesso, beneficiam dessa gestão sustentável ao contrário do que acontece quando não há propriedade.

Alguns comentadores podem não considerar tais formas de propriedade como propriedade “privada”. De facto, a própria Ostrom usou um vocabulário com nuances que tornou as suas ideias acessíveis e populares entre um amplo leque de pessoas. A semântica realmente não importa. O seu trabalho demonstra a importância do princípio da subsidiariedade, da aplicação das regras que garantem a exclusão dos recursos e de direitos de propriedade comunitários e não-individualizados na preservação dos recursos ambientais. A abordagem é congruente com a Doutrina Social da Igreja em vários aspetos e merece maior consideração no desenvolvimento dessa doutrina.

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Contraparitdas, preços e mercados

Um assunto final sobre o qual o diálogo pode ser útil consiste na questão das contrapartidas e no papel dos preços e dos mercados em regular o consumo e no estímulo ao investimento em alternativas.

A Laudato si estava certa em afirmar que o consenso científico é de que existirão alterações climáticas causadas pelo homem. No entanto, existe ainda uma questão mais adequada ao domínio da economia sobre se as ações para travar as alterações climáticas causarão mais dano que benefícios. Tornar a energia mais cara ou menos fiável pode inibir o desenvolvimento económico ou reduzir a nossa capacidade para inovar ou para ser resiliente face a eventos atmosféricos extremos. Tal como referido acima, a desflorestação abrandou dramaticamente em muitos países e isto está muitas vezes relacionado com aumentos nos rendimentos[21]. A Laudato si nota que “a terra, nossa casa, parece transformar-se cada vez mais num imenso depósito de lixo” (21). Mas em muitos países desenvolvidos, os indicadores ambientais estão a melhorar dramaticamente. Quando uma comunidade tem de escolher entre desnutrição e desflorestação, é muito mais difícil tomar uma decisão para preservar o ambiente. Em termos económicos, a conservação do ambiente é um bem com elasticidade positiva face ao rendimento. Vale a pena notar, por exemplo, que desde 1970 nos EUA, as emissões combinadas das mais importantes partículas diminuíram 77%[22]. Tais melhorias são muito mais difíceis de alcançar por países mais pobres.

Um bom exemplo disto é o uso do ar condicionado que foi fortemente criticado no parágrafo 55 da Laudato si. Contudo, o ar condicionado levou a uma redução de 80% das mortes por calor nos EUA e está a tornar-se mais importante em hospitais em países como a Índia onde irá, se for adotado de forma mais ampla, reduzir substancialmente as mortes por calor. O ar condicionado também tem facilitado movimentos populacionais significantes para o sul, mais quente, dos EUA que de outra forma não se verificariam – manter os locais quentes frescos com ar condicionado é muito menos intensivo em carbono do que aquecer lugares frios, como Chicago, no inverno (ver Barecca et al, 2013). Existe assim um compromisso entre uma tecnologia que emite carbono e o papel dessa mesma tecnologia em reduzir mortes em geral e em facilitar a adaptação às alterações climáticas.

Poderia certamente argumentar-se que a Laudato si apresentava uma visão dos mercados demasiado negativa. Todavia, supôs também talvez decisões genuinamente difíceis que têm de ser tomadas no domínio político. Por vezes, políticas que, à primeira vista, podem beneficiar o grupo que mais estamos a tentar ajudar, numa análise mais profunda, causam outros danos que podem ser maiores.

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Conclusão

As questões discutidas neste capítulo são mais sérias nas comunidades mundiais mais pobres, com quem a Igreja tem um cuidado especial. A Laudato si, a grande encíclica do Papa Francisco sobre o ambiente, foi uma tentativa de desenvolver e unir os ensinamentos morais da Igreja Católica com a economia e a ciência modernas.

As perceções sobre a natureza humana e os motivos pelos quais devemos cuidar do ambiente foram bem expressos e deveriam tocar o coração de todas as pessoas de boa vontade. No entanto, pode ser argumentado que a encíclica poderia ter sido mais bem-sucedida em integrar as ideias há muito defendidas pela Igreja sobre a propriedade privada com a preocupação pelo ambiente, especialmente dados os desenvolvimentos modernos da economia. A Igreja tem estado no centro destes debates no passado e deveria estar também agora. A mais recente encíclica do Papa Francisco, Fratelli tutti reforçou a impressão de que a Igreja acredita que a instituição da propriedade privada pode ser problemática exatamente nas mesmas circunstâncias em que pode promover o bem comum de forma mais eficaz. Dado que os riscos são tão elevados, é importante que se abra um diálogo sobre estas questões para que possamos desenvolver enquadramentos de políticas públicas que promovam o bem comum.

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Referências

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Araujo, C., Araujo Bonjean, C., Combes, J- L., Combes, M. P. and Reis, E. J. (2009), Property Rights and Deforestation in the Brazilian Amazon, Ecological Economics, 68, 8–9 (June): 2461–2468.

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Gissurarson, H. N. (2015), The Icelandic Fisheries: Sustainable and Profitable, Reykjavik: University of Iceland Press.

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Sundstrom, A. (2016), Understanding Illegality and Corruption in Forest Governance, Journal of Environmental Management, 181:779-790.

United Nations Environment Program (2013), Haiti–Dominican Republic Environmental Challenges in the Border Zone, Nairobi: United Nations Environment Program.

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Encíclicas papais e outros documentos da Igreja referidos nesta secção

Francisco, 2020, Fratelli tutti, carta encíclica:
https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html

Francisco, 2015, Laudato si, carta encíclica:
https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html

Bento XVI, 2009, Caritas in veritate, carta encíclica:
https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate.html

João Paulo II, 1991, Centesimus annus, carta encíclica:
https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_01051991_centesimus-annus.html

João Paulo II, 1987, Sollicitudo rei socialis, carta encíclica:
http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_30121987_sollicitudo-rei-socialis.html

João Paulo II, 1981, Laborem exercens, carta encíclica:
https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_14091981_laborem-exercens.html

João Paulo II, 1979, Redemptor hominis, carta encíclica:
https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_04031979_redemptor-hominis.html

Paulo VI, 1971, Octogesima adveniens, carta apostólica:
https://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/apost_letters/documents/hf_p-vi_apl_19710514_octogesima-adveniens.html

João XXIII, 1963, Pacem in terris, carta encíclica:
http://www.vatican.va/content/john-xxiii/pt/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_11041963_pacem.html

Leão XIII, 1891, Rerum novarum, carta encíclica:
https://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html

Pontifício Conselho para a Justiça e Paz (2004), Compêndio da Doutrina Social da Igreja,https://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/documents/rc_pc_justpeace_doc_20060526_compendio-dott-soc_po.html

Igreja Católica (1994), Catecismo da Igreja Católica,
https://www.vatican.va/archive/cathechism_po/index_new/prima-pagina-cic_po.html

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Anexo

Conservação ambiental e direitos de propriedade sobre a água

O abastecimento de água é um bom exemplo da importância dos direitos de propriedade privada e da conservação do ambiente. Existe uma preocupação generalizada sobre o esgotamento dos recursos hídricos. E na Laudato si, isto foi associado com a privatização:

“Enquanto a qualidade da água disponível piora constantemente, em alguns lugares cresce a tendência para se privatizar este recurso escasso, tornando-se uma mercadoria sujeita às leis do mercado. Na realidade, o acesso à água potável e segura é um direito humano essencial, fundamental e universal, porque determina a sobrevivência das pessoas e, portanto, é condição para o exercício dos outros direitos humanos.” (30, ênfase no original)

É, contudo, em condições de escassez que os mercados e os direitos de propriedade são mais importantes. Quando as coisas existem em abundância não precisamos nem de mercados nem de direitos de propriedade para alocar recursos. O facto de a água poder ser considerada um direito humano e essencial para a sobrevivência não muda isto. A alimentação e o abrigo são considerados pela Igreja como direitos humanos básicos, mas é muito raro encontrar argumentos que defendam que não deveriam existir mercados, direitos de propriedade ou preços para tais bens e serviços.

As funções sociais mais importantes dos mercados e dos direitos de propriedade, quando nos referimos à água, consistem em assegurar que é utilizada com cuidado e alocada de acordo com os seus mais importantes e valiosos usos. No mundo desenvolvido, por exemplo, a Califórnia tem crises de água e, ainda assim, a maioria das casas em muitas cidades não tem contador de água e o governo limita o preço da água. Além disso, a agricultura corresponde a 80% do consumo de água na Califórnia, mas representa apenas 2% da atividade económica, com a terra a ser inundada para cultivo de arroz e alfalfa. Feitas as contas, ao longo dos anos, os agricultores pagaram apenas 15% dos custos de capital do sistema federal que distribui a maioria da água aos agricultores na Califórnia. Sem surpresas, apenas 4% da água nos EUA é reutilizada.

A situação é pior em muitos países mais pobres. Um relatório recente para o Parlamento indiano sugere que o atual sistema de subsídios “encoraja o uso de mais produtos [na agricultura] como fertilizantes, água e energia, em detrimento da qualidade do solo, da saúde e do ambiente. Também beneficiam de forma desproporcionada os agricultores maiores e mais ricos”[23].

A definição de preços nos recursos hídricos e a propriedade privada encorajam a conservação, o investimento na prevenção de desperdício e o uso de água para os seus fins mais valiosas em países com escassez de água. Também reduz a possibilidade de interesses empresariais mais ricos e mais bem relacionados poderem obter subsídios para a água à custa da população em geral.

A ausência de direitos de propriedade sobre a água tem também o potencial de espalhar as sementes de conflitos violentos no próximo século à medida em que a água se vai tornando mais escassa. Isto leva-nos de volta ao terceiro ponto de São Tomás de Aquino sobre a propriedade privada: a propriedade privada assegura a paz se for dividida e compreendida.

Têm existido problemas significativos com programas de privatização da água, especialmente em países mais pobres, incluindo em países cujas Conferências Episcopais contribuíram para a Laudato si. Isto tem envolvido normalmente a gestão privada de infraestruturas hídricas pré-existentes em parcerias público-privadas e é verdade que tais esquemas têm sido frequentemente assolados por corrupção e ineficiência. Pode ser que a Laudato si esteja, implicitamente, a referir-se aos problemas com esses esquemas quando menciona os problemas de privatização. Deve também notar-se que a nacionalização dos direitos e do abastecimento de água não é incompatível com a sua utilização eficiente, desde que a água tenha um preço.

A conclusão não é a de que a água deva ser sempre e em todo o lado propriedade privada e tarifada, mas é a de que:

  • A definição de preços pode ser importante para garantir que os recursos hídricos são usados para os seus fins sociais mais importantes e para garantir que não são desperdiçados onde são mais escassos ou apropriados por interesses políticos bem relacionados.
  • A propriedade privada não é intrinsecamente incompatível com o bem comum e pode bem promovê-lo nesta e em outras áreas.
  • A propriedade clara (mesmo que pelo estado) pode ajudar a prevenir conflitos.
  • O estado tem de assegurar, de alguma forma, que todos têm acesso a água potável para funções essenciais.
  • Se o estado controlar os recursos hídricos e se forem escassos deve garantir que o seu uso é tarifado, na maior parte dos casos.
  • A boa governação e a proteção dos direitos de propriedade são importantes independentemente do regime de propriedade.

Embora possam parecer argumentos económicos e não de teológicos, estes pontos constituem o tipo de raciocínio prudente que é importante no pensamento social Católico quando fazemos julgamentos sobre instituições sociais e a conclusão aqui é diferente do julgamento do Papa Francisco na Laudato si.

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Questões para discussão

Até que ponto a Laudato si expandiu a tradição da Doutrina Social da Igreja sobre o ambiente que começou em documentos anteriores da Igreja Católica?

De que forma o Papa Francisco recorreu aos ensinamentos dos primórdios da Igreja, a São Tomás de Aquino e a fontes bíblicas para desenvolver a Laudato si?

Como deve a ideia de justiça distributiva ser expandida para incluir a justiça em relação às gerações futuras? Que áreas, para além do ambiente, podem ser relevantes aqui?

De que forma podem as comunidades gerir os recursos naturais adotando os princípios da subsidiariedade e da solidariedade? Ainda que o trabalho académico neste assunto tenha sido principalmente desenvolvido nos países mais pobres, se vive num país mais rico tal como os EUA ou o Reino Unido, consegue pensar em exemplos locais de gestão pela comunidade de recursos ambientais?

Discuta como é que a boa governação, a paz, o estado de direito e a ausência de corrupção são importantes para os resultados ambientais. Analise alguns dados empíricos sobre medidas de corrupção e resultados ambientais e discuta os resultados.

Será um paradoxo ou uma contradição que a propriedade privada seja importante para promover a gestão dos recursos ambientais?

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Notas de rodapé

[1] Apesar de o material ter sido atualizado e substancialmente alterado, existem sobreposições entre secções posteriores deste capítulo e Booth (2017).

[2] O autor deste capítulo, por exemplo, foi convidado para o programa da BBC Newsnight na noite antes do lançamento da Laudato si para debater a esperada rejeição do comércio de emissões de carbono pelo Papa.

[3] As referências estão nas notas de rodapé 60-63 da Laudato si.

[4] Igreja Católica (1994).

[5] Incluindo três vezes na introdução. A palavra “diálogo” aparece 23 vezes no documento.

[6] Esta citação cita ela própria a Populorum progressio, indo por isso ainda mais atrás. Esta referência está listada como Pontifício Conselho para a Justiça e Paz (2004) nas referências.

[7] Note-se, por exemplo, a diferença no tom pelo menos entre o parágrafo 58 da Populorum progressio e o 33 da Centesimus annus sobre a questão do comércio e do protecionismo.

[8] Isto é também claramente referido na Centesimus annus (3). Debate-se frequentemente se as encíclicas sociais se enquadram no magistério. Isso seria não perceber o ponto. É a natureza do raciocínio que determina se certas declarações numa encíclica se enquadram no magistério.

[9] Para uma discussão abrangente sobre a propriedade privada na Doutrina Social da Igreja, ver Booth (2021).

[10] Ver Chroust e Affeldt (1951) e Bergida (2020).

[11] Ver Charles (1998, volume um, pág. 207) e Alves e Moreira (2010).

[12] Aquinas (1965), IIa, Q 66, Art 2.

[13] Ver, por exemplo, este relatório do World Wildlife Fund: https://wwf.panda.org/our_work/oceans/problems/fisheries_management/

[14] Para uma discussão menos académica ver: https://www.youtube.com/watch?time_continue=156&v=JmNlmIM2HC8&feature=emb_logo

[15] Ambos os lados da fronteira podem ser vistos em: : https://www.unenvironment.org/news-and-stories/story/haiti-and-dominican-republic-jointly-counter-environmental-degradation-and

[16] https://ourworldindata.org/forests#forest-cover-by-country

[17] https://fundforpeace.org/wp-content/uploads/2019/04/9511904-fragilestatesindex.pdf

[18] https://www.transparency.org/en/cpi/2019/results/table

[19] https://www.heritage.org/index/country/haiti

[20] Ver, por exemplo, este vídeo sobre o projeto. As reservas são detidas e governadas por uma combinação de instituições privadas sem fins lucrativos com o governo: https://www.youtube.com/watch?v=rKLeOu1JFhc

[21]   Embora também com outras tendências que estão relacionadas com o aumento do rendimento, tais como uma melhor governação.

[22] Ver: https://gispub.epa.gov/air/trendsreport/2020/#introduction

[23] Ver https://www.thethirdpole.net/2016/02/28/government-underlines-indias-water-crisis/

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SOBRE O AUTOR

Sobre o autor
Philip Booth é Professor de Finanças, Políticas Públicas e Ética na Universidade de St. Mary’s, Twickenham. É também o Diretor da Missão Católica em St. Mary’s e foi anteriormente Diretor para a Investigação e Envolvimento Público, bem como Diretor da Faculdade de Educação, Humanidades e Ciências Sociais. Philip é também Diretor do Vinson Centre for the Public Understanding of Economics e Professor de Economia na Universidade de Buckingham e Senior Academic Fellow no Institute for Economic Affairs (IEA), onde foi também Diretor Académico e para a Investigação entre 2002-2016. De 2002 a 2015, Philip foi Professor de Seguros e Gestão de Riscos da Cass Business School. É membro investigador sénior do Centre for Federal Studies na Universidade de Kent e Professor na Faculdade de Direito da Universidade de Notre Dame, Austrália. Anteriormente, Philip trabalhou para o Banco de Inglaterra como assessor para os assuntos de estabilidade financeira. Philip é membro da Royal Statistical Society e membro do Institute of Actuaries.

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