A Doutrina Social da Igreja sobre o contexto empresarial
A perspetiva da Doutrina Social da Igreja sobre o contexto empresarial é uma árvore com raízes no solo da Bíblia e na tradição primitiva da Igreja, de onde retira o seu sustento. Para crescer, esta árvore precisava de elementos adicionais: a filosofia, o direito e as ciências sociais. Para ser compreendida e implementada na vida social, a fé requer a mediação do pensamento sistemático (filosofia), bem como a ordenação da razão prática que determina e concretiza princípios gerais à luz do bem comum. Esta é a tarefa do direito, tanto do direito canónico (a lei que regula a vida e a organização da Igreja na terra) como do direito civil (originalmente, na história da igreja, o direito romano). No entanto, para que o direito seja eficaz é preciso que compreenda a realidade. As ciências sociais fornecem os dados e a sua interpretação que são necessários para abordar as verdadeiras questões e as preocupações que afetam a sociedade em cada momento da história.
(Voltar ao conteúdo da unidade)
Os princípios e as perceções normativas da Doutrina Social da Igreja
Neste capítulo não consigo apresentar o desenvolvimento de toda a tradição do pensamento social Católico no que diz respeito ao contexto empresarial. Irei por isso concentrar-me nas encíclicas sociais desde a sua origem com a Rerum novarum de Leão XIII em 1891 até à Laudato si do Papa Francisco publicada em 2015. Na preparação deste capítulo, reli todas as encíclicas sociais pela enésima vez e terminei esta releitura com sentimentos mistos. Pelo lado negativo, senti-me de alguma forma envergonhado pelo facto de algumas afirmações não fundamentadas, sem discussão ou análise de dados, terem sido feitas em nome do magistério católico. Em algumas secções não pude evitar uma acentuada sensação de tédio e precisei de me forçar a trabalhar por entre páginas enfadonhas que se tornaram (ou que sempre foram) na melhor das hipóteses irrelevantes, se não mesmo insignificantes. Algumas descrições de assuntos económicos são tão negativas que o leitor fica a questionar-se em que mundo viveu o autor. Pelo lado positivo e preponderante, senti-me inundado de gratidão pela profunda sabedoria contida nas centenas de páginas do magistério social. Os princípios da Doutrina Social da Igreja são bem formulados e requintadamente equilibrados.
Os princípios são a dignidade humana, o bem comum, a solidariedade e a subsidiariedade, que se relacionam entre si de forma tensa. A dignidade humana apoia a liberdade e o crescimento individual através do desenvolvimento integral dos talentos e dos dons pessoais de cada um. O bem comum requer eventualmente o sacrifício da liberdade individual e dos bens a fim de servir a comunidade. A solidariedade, como princípio social e não como virtude individual, cria um sistema que coletiviza os encargos sociais. Tomemos a dívida pública como exemplo. A sociedade como um todo partilha os encargos financeiros e económicos que se tornaram necessários para manter o bem comum (subsídios de saúde, de segurança social, de velhice, de desemprego, etc). Em parte como resultado, a dívida pública sobe em flecha, uma tendência que é agravada por questões demográficas e por reações à pandemia de covid-19. Rapidamente percebemos que é preciso controlar esta tendência e é a subsidiariedade que assume este controlo. A subsidiariedade cumpre a tarefa de conter os free-riders e as desconsiderações disfuncionais de deveres pessoais. A subsidiariedade requer que as coisas que entidades mais pequenas podem e devem realizar não lhes sejam retiradas pelas entidades maiores, nem devem as entidades mais pequenas pedir ajuda demasiado depressa. A resiliência é um pré-requisito para a subsidiariedade.
Os quatro princípios referidos são antagónicos e as suas tendências opostas formam o espaço social no qual podemos viver bem. São como as cordas que são necessárias para montar uma tenda. Quatro cordas esticadas em quatro direções opostas, erguendo a tenda e mantendo-a direita. Se cortássemos uma das cordas, a tenda colapsaria e nós perderíamos o nosso espaço social. Se absolutizarmos um dos princípios à custa dos outros, perdemo-los todos. Os que sacrificam a liberdade em nome da igualdade (como o comunismo fez) acabam por perder tanto a liberdade como a igualdade. Aqueles que sacrificam a igualdade em nome da liberdade (como o libertarianismo faz) acaba por perder ambos. Pelo contrário, a Doutrina Social da Igreja evita os extremos e cria um espaço social para uma vida social pacífica e para o crescimento humano integral. A estabilidade e a continuidade da Doutrina Social da Igreja ao longo dos séculos revela a sua conformidade com a natureza humana e com os desejos mais profundos dos nossos corações e mentes. É um caminho seguro em frente.
Olhando para as encíclicas que dizem respeito à vida empresarial na sua totalidade, vemos que algumas enfatizam o sistema socioeconómico como um todo (Quadragesimo anno; Populorum progressio). Outras abordam antes o ator empresarial individual (Rerum novarum; Mater et magistra). Outras são ainda uma mistura de ambas as abordagens (Gaudium et spes; Centesimus annus; Caritas in veritate). Algumas encíclicas são pessimistas e sombrias (Quadragesimo anno; Populorum progressio), outras são otimistas (Mater et magistra; Centesimus annus).
Seguindo o desenvolvimento da Doutrina Social da Igreja, tal como formulada nas encíclicas ao longo do tempo, apercebemo-nos de que a qualidade e a quantidade de tópicos que abordam cresce. Há cada vez mais tópicos a serem encontrados. Inicialmente, a situação dos trabalhadores estava na dianteira (a questão dos trabalhadores), mas rapidamente a questão social se tornou a de todo o sistema socioeconómico; depois foi introduzida a questão institucional; depois a antropológica; e, finalmente, a questão ecológica. Dificilmente haverá algum tópico social que não foi mencionado numa das encíclicas sociais. Apenas na Caritas in veritate (Bento XVI 2009) contei 92 temas diferentes de interesse (estou certo de que outros leitores contarão de forma diferente dependendo do que consideram ser um tema). Este crescimento por parte da Doutrina Social da Igreja tem a ver com o desejo de atualizar as encíclicas iniciais, lançando a luz dos princípios da Doutrina sobre as circunstâncias históricas, novas e em rápida mutação, próprias dos tempos. Tem também a ver com o próprio processo de publicação de uma encíclica: estão muitas mãos a trabalhar e a juntar os seus temas preferidos antes de o Papa aprovar o texto final. A interação entre os princípios perenes e as suas aplicações diversas e variadas a circunstâncias históricas é uma marca distintiva da Doutrina Social da Igreja, que é caraterizada pela continuidade e pela reforma (ver Sollicitudo rei socialis, 3).
O que se torna aparenta na leitura das encíclicas socias é a existência de um nível intermédio entre os princípios perenes e bastante abstratos que foram mencionados acima (dignidade humana, bem comum, solidariedade e subsidiariedade) e o vai e vem de eventos e circunstâncias (uma crise financeira, uma pandemia, etc). Este nível intermédio consiste em ideias reguladoras ou perceções normativas que tornam os princípios aplicáveis a um nível operacional. O fosso entre a sublimidade da dignidade humana e a questão concreta sobre se se deve colocar os trabalhadores em lay-off numa situação especifica ou não é tão grande que a mente humana se agarra a algo mais específico para a ajudar nesta sua decisão. Precisamos de um nível intermédio. Beauchamp e Childress (2001) relatam algo semelhante para a área da bioética. A experiência do seu trabalho em comités de bioética mostrou-lhes que membros com convicções éticas variadas e até opostas (utilitaristas, Kantianos, liberais, comunitaristas, ética dos cuidados) eram ainda assim capazes de convergir em certas perceções normativas[1]. Eles eram capazes de concordar sobre o que fazer num determinado caso, mas não na razão pela qual o deveriam fazer. Na Doutrina Social da Igreja existe unidade perene de valores básicos (os princípios): como Cristãos, sabemos a razão pela qual fazemos as coisas. No entanto, precisamos também de as pôr em prática de uma forma eficaz. E é aqui que as encíclicas fornecem um fio condutor de perceções normativas que formam uma tradição.
Nas encíclicas sociais, distingo três destas ideias reguladoras intermédias ou grandes convicções relativamente à economia e ao contexto empresarial que formam um fio condutor comum a toda a tradição:
- A economia é parte de uma ordem moral superior; e isto faz com que as chamadas leis económicas não sejam uma desculpa para um comportamento económico imoral.
- A pessoa humana está no centro da economia; como consequência, o propósito da vida empresarial não é a maximização do lucro, mas o crescimento humano.
- O bem comum tem precedência sobre o interesse económico individual.
Estas ideias reguladoras intermédias ou convicções básicas tem várias implicações teóricas e consequências práticas. Nas secções seguintes, procurarei desvendar o seu significado para o contexto empresarial com base na Doutrina Social da Igreja. Não conseguirei resumir todas as encíclicas e enumerar todos os exemplos que contêm, mas tentarei dar a essência de cada perceção normativa. Irei citar alguns textos relevantes de encíclicas socais e analisar possíveis aplicações na vida económica e empresarial de hoje, traçando as linhas da tradição na Doutrina Social da Igreja.
(Voltar ao conteúdo da unidade)
A economia é parte de uma ordem moral superior: as chamadas leis económicas não são uma desculpa para um comportamento económico imoral
O magistério da Igreja respeita os conhecimentos profissionais dos economistas e as competências técnicas das pessoas de negócios. O magistério não é competente nestas matérias e não se pode aventurar a impor qualquer julgamento profissional ou científico. Seria tão tolo para um padre ou um teólogo (que não tenha estudado economia) pronunciar-se sobre dados e análises económicas, como seria para ele tentar eletrificar ou canalizar a sua casa, ainda que insista legitimamente em ter eletricidade e canalização em sua casa.
A autoridade da Igreja é moral. Ela afirma ser divinamente dotada de um património de sabedoria moral que é encarregue de partilhar também com o mundo empresarial. Toda a atividade humana livre é atividade moral e o seu propósito final é expressar amor por Deus e pelos nossos semelhantes. É por isso que a Igreja formula uma doutrina moral sobre a atividade económica (Quadragesimo anno, 41-2). A economia não é um sistema puramente mecânico, técnico ou científico: é constituída por pessoas humanas com corpos e almas, vontades e desejos, medos e esperanças razoáveis e irracionais. Estas são as pessoas que a Igreja está a tentar iluminar com a luz do Evangelho e através do Espírito Santo. Por outras palavras, a Igreja respeita a autonomia dos assuntos terrenos e, ao mesmo tempo, recorda-nos que tal autonomia tem de ser relativa: relativa à lei moral de Deus (Gaudium et spes, 64). Este é o tipo de laicidade que a Igreja aceita. Na modernidade, vários setores da vida social emanciparam-se da tutela eclesiástica e desenvolveram as suas próprias regras e governação independentes do clero. A política, a economia, a ciência, a cultura, a educação e mesmo o poder militar estiveram, em tempos, sob o controlo e a orientação do clero ou ao seu serviço. No Concílio Vaticano II, a Igreja proclamou a vocação universal à santidade de todos os fiéis, e também dos leigos, que são chamados a ser fermento, sal e luz no meio do mundo, construído o reino de Deus com a sua natureza e mentalidade secular. Na sua própria responsabilidade, guiados pela sua consciência bem formada, com a ajuda sacramental e educativa do clero, os leigos têm de apontar o caminho do que significa ser verdadeiramente cristão na sua própria caminhada de vida, com as suas infinitas variações e voltas e reviravoltas constantes.
Na sua missão apostólica no contexto empresarial, os cristãos leigos enfrentam frequentemente um ambiente hostil à fé, incluindo à fé cristã. Ao invés de uma boa laicidade, espalhou-se uma cultura de secularismo. E o secularismo exclui a fé cristã da vida pública. O Cristianismo é tolerado como um assunto puramente privado que não deve influenciar o comportamento público. Em vez disso, é imposta a todos uma atitude de suposta neutralidade científica que é considerada a única verdade objetiva. O magistério reagiu de três formas diferentes às correntes culturais contemporâneas.
Já durante o Concílio Vaticano II, a Igreja proclamou que “Cristo, novo Adão, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime” (Gaudium et spes, 22). A ordem moral moderna é uma tentativa falhada de preservar os valores cristãos (dignidade humana, igualdade, liberdade, etc.) sem fé no Deus cristão. No entanto, estes valores erguem-se e caem com a convicção da existência de um Criador e Pai de todos, à imagem e semelhança de quem somos criados e em quem nos podemos reconhecer como irmãos e irmãs. Sem Deus podemos ser vizinhos, mas não irmãos. Num mundo e numa cultura que exclui Deus, o humanismo torna-se inumano. Talvez durante algum tempo as pessoas se agarrem aos valores que lhes foram transmitidos pelos seus antepassados crentes, mas depois perdem a razão de ser e a narrativa. Os valores murcham como flores que foram cortadas e arrancadas das suas raízes. As regras e as normas tornam-se insignificantes como as linhas num campo de futebol e as regras do jogo quando os golos são eliminados. Durante algum tempo, os jogadores lembram-se que havia golos e quais eram as suas posições mas, no fim, as linhas e as regras perdem o seu sentido. As pessoas perguntam-se porque são obrigadas a correr atrás de uma bola. A rejeição de Deus tem, portanto, repercussões imediatas na visão do homem, na nossa antropologia. Assim, a economia (e qualquer ciência, especialmente se for social) faz várias suposições antropológicas implícitas ao formular as suas próprias teorias. Por este motivo, e creio que corretamente, João Paulo II colocou a Doutrina Social da Igreja no campo da antropologia cristã, portanto da teologia, e mais precisamente da teologia moral. Ela preocupa-se com a forma como os homens e as mulheres se comportam em sociedade e em contexto empresarial (Centesimus annus, 55 citando Sollicitudo rei socialis, 41).
A segunda linha de argumentação em declarações recentes do Magistério adverte para o aumento de uma forma de positivismo que, ao absolutizar certos aspetos da vida humana, acaba por perder a capacidade para compreender a pessoa humana na sua totalidade. “Esta redução científica (…) mutila o homem” (Octogesima adveniens, 38). Sabemos mais e mais sobre os nossos corpos, sabemos o que somos num sentido físico e químico, mas sabemos menos e menos sobre quem somos e qual é o nosso propósito na terra. “Depois de se ter submetido racionalmente a natureza, eis que é o próprio homem que se acha como que encerrado, ele mesmo, na sua racionalidade; também ele se torna objeto de ciências” (38). Sem uma visão holística do ser humano e de uma ordem moral orientadora, a tecnologia, o crescimento económico e o progresso viram-se contra nós: “não é suficiente progredir do ponto de vista económico e tecnológico; é preciso que o desenvolvimento seja, antes de mais nada, verdadeiro e integral” (Caritas in veritate, 23). O progresso é verdadeiro e integral quando desenvolve a dimensão moral da pessoa humana. O enorme crescimento das ciências naturais e sociais desde o iluminismo deveu-se, em parte, à especialização. As disciplinas científicas tornaram-se independentes, focadas em secções mais pequenas da realidade, apoiando-se em dados empíricos adquiridos através da experimentação. No entanto, quando esta especialização rejeita a metafísica e declara irrelevante a fé em Deus, danifica:
“não só o avanço do saber mas também o desenvolvimento dos povos, porque, quando isso se verifica, fica obstaculizada a visão do bem completo do homem nas várias dimensões que o caracterizam. É indispensável o «alargamento do nosso conceito de razão e do uso da mesma» para se conseguir sopesar adequadamente todos os termos da questão do desenvolvimento e da solução dos problemas sócio-económicos.” (Caritas in veritate, 31, citando Bento XVI, Discurso na Universidade de Regensburg, 12 Setembro 2006)
Acabamos por saber cada vez mais sobre cada vez menos até que saibamos tudo sobre nada, ou pelo menos sobre nada que seja humanamente relevante. Por esta razão, o Papa Francisco também apelou a uma visão mais integral: “torna-se actual a necessidade imperiosa do humanismo, que faz apelo aos distintos saberes, incluindo o económico, para uma visão mais integral e integradora.” (Laudato si, 141).
Partindo do acima exposto, a terceira afirmação da Doutrina Social da Igreja sobre este assunto é a de que “a economia precisa de ética para funcionar corretamente” (Caritas in veritate, 45). Por um lado, esta frase recupera o ensinamento tradicional de que toda a economia deve ser ética porque consiste em comportamento humano livre. Por outro lado, a frase citada também pretende inverter a linha tradicional de argumentação: para ser correto num sentido económico, o contexto empresarial tem de ser ético. Só existe uma realidade, uma verdade que pode ser vista de diferentes ângulos e sob diferentes aspetos formais, mas os resultados das diferentes disciplinas têm de convergir numa concordância substancial. Em caso de aparente discordância, a disciplina superior e definidora decide. Contudo, onde não existe discordância, todas as disciplinas se apoiam mutuamente: a ética ajuda a vida empresarial e a economia apoia a ética.
Na Caritas in veritate, Bento XVI utiliza razões económicas para suportar afirmações morais. Isto é uma novidade no magistério e algo que Amartya Sem tinha já apoiado em 1987[2]. Bento XVI escreveu: “verifica-se uma convergência entre ciência económica e ponderação moral. Os custos humanos são sempre também custos económicos, e as disfunções económicas acarretam sempre também custos humanos” (Caritas in veritate, 32).
Por que razão devemos menosprezar argumentos éticos ou morais se existem razões económicas suficientes para um bom plano de ação? A dificuldade que surge aqui, todavia, é que devemos distinguir entre atividade humana na praxis económica e a metodologia da economia enquanto ciência. A dimensão ética não é a mesma a nível prático e epistemológico. Quando se trata de atividade humana no sentido de uma pessoa de negócios é bastante claro, até banal, que tem de ser avaliada num sentido moral. Toda a ação livre se situa no plano moral pelo simples facto de ser livre, orientada pela nossa vontade para um objetivo, e, portanto, ou boa ou má[3]. Há uma vasta literatura sobre isto na ética empresarial.
Em contrapartida, a prevalência da ética não é tão clara quando se trata de economia como uma ciência. Deve a economia ser neutra em termos de valor? Como é que a ética influencia a investigação económica? Deve a investigação económica ser restringida por razões morais? Estas são questões difíceis que excedem o âmbito deste capítulo. No entanto, dou duas breves respostas. Em primeiro lugar, embora não exista uma definição universalmente aceite de economia, de forma geral, a economia estuda o uso eficiente de recursos escassos para a obtenção de fins alternativos: estuda a criação de riqueza, e fá-lo tanto de forma descritiva (economia positiva), como de forma prescritiva (economia normativa). Proponho que a economia deva estudar certas procuras pelo lucro não como atividades económicas mas como atividades criminosas. Tomemos como exemplo os diferentes mercados e sistemas de distribuição de drogas; ou o tráfico de seres humanos, a prostituição e a pornografia. Estas atividades movem milhares de milhões de dólares. No entanto, são imorais e, em muitos sistemas legais, criminosas. Como economistas devemos estudar os aspetos económicos destas atividades (formação de preços, modelos de distribuição, etc.) mas assinalá-los como sendo maus. Caso contrário, num certo sentido, poderíamos tornar-nos cúmplices. Ao darmos a impressão de neutralidade de valor, concederíamos a tais atividades o direito à cidadania. Em segundo lugar, em economia usamos expressões que são definidas por outras disciplinas ou pela cultura em geral: pessoa, bem, serviço, riqueza, trabalho, produção, e assim por diante. Somos também parte de um sistema de valores que nós próprios não criámos e, para não sermos manipulados, precisamos de refletir e, tanto quanto possível, tornar os valores explícitos. Tomemos como exemplos os estudos empíricos sobre o impacto da liberalização da prostituição na violação (ver o estudo de Bisschop, Kastoryano e van der Klaauw, 2017). A liberalização da prostituição parece reduzir a incidência de violação. Ao afirmarmos este facto empírico, pressupomos, com razão, que a violação e a prostituição são más e indesejáveis, mas que uma é pior do que a outra. São estes os valores que orientam a nossa investigação.
(Voltar ao conteúdo da unidade)
A pessoa humana está no centro da economia: o propósito dos negócios não é a maximização dos lucros mas o florescimento humano
A Doutrina Social da Igreja começou com a defesa do trabalhador:
“o trabalho tem uma tal fecundidade e tal eficácia, que se pode afirmar, sem receio de engano, que ele é a fonte única de onde procede a riqueza das nações. A equidade manda, pois, que o Estado se preocupe com os trabalhadores, e proceda de modo que, de todos os bens que eles proporcionam à sociedade, lhes seja dada uma parte razoável, como habitação e vestuário, e que possam viver à custa de menos trabalho e privações [31]. De onde resulta que o Estado deve favorecer tudo o que, de perto ou de longe, pareça de natureza a melhorar-lhes a sorte. Esta solicitude, longe de prejudicar alguém, tornar-se-á, ao contrário, em proveito de todos, porque importa soberanamente à nação que homens, que são para ela o princípio de bens tão indispensáveis, não se encontrem continuamente a braços com os horrores da miséria.” (Rerum novarum, 18)[4]
Assim, desde o início, encontramos a firme convicção na Doutrina Social da Igreja de que a economia deve servir todos e não apenas alguns. O Concílio Vaticano II expressou esta ideia nas seguintes palavras:
“Mas a finalidade fundamental da produção não é o mero aumento dos produtos, nem o lucro ou o poderio, mas o serviço do homem; do homem integral, isto é, tendo em conta a ordem das suas necessidades materiais e as exigências da sua vida intelectual, moral, espiritual e religiosa; de qualquer homem ou grupo de homens, de qualquer raça ou região do mundo.” (Gaudium et spes, 64)
Por um lado, a Igreja não defende certamente o igualitarismo (todos devem ter e ser o mesmo), mas está consciente do efeito benéfico de incentivar aqueles que têm talento e de recompensar as pessoas pelo seu trabalho árduo ao defender o seu direito à propriedade privada. A Doutrina Social da Igreja rejeita de forma consistente as tentativas socialistas de abolir a propriedade privada dos meios de produção e de coletivizar a produção económica. Nada motiva mais o trabalho do que a perspetiva de usufruir dos frutos do próprio trabalho. As encíclicas sociais defendem a propriedade privada como uma extensão da liberdade individual e como sendo do interesse da independência familiar. Pelas mesmas razões (liberdade e independência), o Papa João XXIII incluiu os direitos económicos na sua lista de direitos e deveres humanos. Entre estes encontra-se o direito ao trabalho e ao empreendedorismo, mas também os direitos sociais dos trabalhadores no trabalho (salário justo, proteção social, segurança, descanso, etc.) (Pacem in terris, 18-22). Por outro lado, os Papas repetem a Doutrina Católica tradicional de que a propriedade não é um direito absoluto e ilimitado, mas está sob uma “hipoteca social”: não só o uso da propriedade é comum a todos em circunstâncias de necessidade extrema, como a propriedade privada obriga os seus proprietários a usá-la no interesse também de outros que não eles próprios: a propriedade enobrece mas a nobreza obriga. Na primeira encíclica social descobrimos uma preocupação especial com os pobres: “todavia, na protecção dos direitos particulares, deve preocupar-se, de maneira especial, dos fracos e dos indigentes.” (Rerum novarum, 20). Estas palavras formulam uma espécie de “opção preferencial pelos pobres” ante litteram: irá tornar-se um termo central na teologia da libertação e no pensamento social Católico depois de Paulo VI.
À medida que as sociedades ocidentais e outras sociedades desenvolvidas se tornaram mais opulentas, foi crescendo a preocupação dos Papas com o propósito dos bens económicos e com a hierarquia dos valores na vida humana. O seu compromisso para com os pobres e os trabalhadores não diminuiu, mas o apelo à centralidade da pessoa humana no contexto empresarial e na economia ganhou um novo e acrescido tom. O consumismo e o materialismo prático ameaçam asfixiar as aspirações espirituais e intelectuais mais elevadas, incitando as pessoas a tropeçar na armadilha do aumento dos desejos e da diminuição da satisfação. Desejamos cada vez mais e retiramos cada vez menos de cada bem adicional. Tantas pessoas em sociedade opulentas parecem estar numa passadeira, a correr e a correr mas sem chegar a lado nenhum, exceto a um vazio espiritual e humano. A razão para esta frustração encontra-se no facto de a felicidade ser “uma questão de perfeição em vez de uma extensiva acumulação (de bens materiais e experiências).” A perfeição “está a chegar à plenitude do ser que é possível” (Hirschfeld 2018, 93).
Numa visão cristã do mundo, o nosso objetivo final é conhecer e amar o bem último que é Deus. A Doutrina Social da Igreja sublinha por isso o caráter instrumental dos bens materiais. “Os bens materiais são, sem dúvida, bons. Mas são puramente instrumentais. Não é suficiente ser rico. A felicidade requer que utilizemos a nossa riqueza para o nobre fim de concretizar a nossa natureza tão plenamente quanto possível em vidas ordenadas a Deus” (Hirschfeld 2018, 97). Os bens económicos são meios e não fins em si próprios: eles devem ajudar-nos a alcançar o florescimento humano (Mater et magistra, 246).
É desta convicção que deriva o ensinamento da Igreja sobre a essência do desenvolvimento humano integral. O desenvolvimento deve ser verdadeiro e integral e, por isso, é de natureza moral. O Papa Bento XVI delineou a noção de desenvolvimento humano integral da Igreja na sua encíclica social Caritas in veritate. O desenvolvimento humano integral requer crescimento económico, sem o qual as pessoas não poderiam usufruir da prosperidade e do lazer necessários para alcançar fins superiores. Todavia, para além do aspeto material, o desenvolvimento humano verdadeiro e pleno implica também a solidez de famílias felizes e abertas à vida, de acordo com o ensinamento da encíclica Humanae vitae. Para além disso, o desenvolvimento no sentido cristão requer formação na fé e na evangelização. Cristo, o Logos, purifica cada pessoa e cada cultura a partir de dentro e leva-a ao seu verdadeiro eu (Caritas in veritate, 15).
Por esta razão, a Doutrina Social da Igreja condena de forma consistente a maximização do lucro como uma “estrutura de pecado”, se entendida como um desejo de lucro que tudo consome e que conduz a uma procura de maximização do lucro “a qualquer custo” (Sollicitudo rei socialis, 37). O lucro enquanto tal é um indicador de um negócio que funciona bem, tanto no sentido económico como no sentido moral: quando há lucro, os recursos são bem usados e postos ao serviço dos proprietários e dos trabalhadores. No entanto, quando a sede pelo lucro se transforma no principal motivo da atividade económica, torna-se autodestrutiva. O lucro não pode ser o objetivo do negócio empresarial tal como o petróleo não pode ser o objetivo de um carro. O objetivo dos negócios são os bens e os serviços que fornecem. Quando os empresários fazem do lucro o seu único objetivo, estão condenados a cometer vários erros práticos: perdem a confiança dos seus clientes e funcionários; a qualidade dos seus produtos diminui porque não são apaixonados por eles; tornam-se eticamente cegos e moralmente mudos sobre as necessidades humanos das pessoas e da sociedade. Aqui chegamos à profunda questão que está subjacente à insistência da Igreja no caráter instrumental dos bens económicos. Vivemos numa sociedade que defende um paradigma de acumulação (“quanto mais, melhor!”), ao invés de um paradigma de perfeição (“do que e de quanto preciso para alcançar a excelência?”) (ver Hirschfeld 2018, 100). O paradigma da acumulação e da ganância é uma estrutura de pecado que conduz a uma absolutização de bens parciais e subordinados e, consequentemente, a “formas reais de idolatria: de dinheiro, ideologia, classe e tecnologia” (Sollicitudo rei socialis, 37). “O mal não consiste no «ter» enquanto tal, mas no facto de se possuir sem respeitar a qualidade e a ordenada hierarquia dos bens que se possuem. Qualidade e hierarquia que promanam da subordinação dos bens e das suas disponibilidades ao «ser» do homem e à sua verdadeira vocação” (Sollicitudo rei socialis, 28). O Papa Francisco é forçosamente franco neste sentido.
São estas considerações mais profundas, e não as alianças políticas, que definem a posição da Igreja sobre os diferentes sistemas económicos. Os Papas criticam de forma consistente tanto o capitalismo liberal como o socialismo Marxista, se e na medida em que são dominados por uma noção materialista da pessoa humana, porque assim revertem “[aquela] ordem estabelecida desde o princípio pelas palavras do Livro do Génesis: o homem passa então a ser tratado como instrumento de produção; enquanto que ele — ele só por si, independentemente do trabalho que realiza — deveria ser tratado como seu sujeito eficiente, como seu verdadeiro artífice e criador” (Laborem exercens, 7). A Doutrina Social da Igreja recomenda sistemas socioeconómicos que combinem mercados livres com responsabilidade social, ao mesmo tempo que repete o princípio de que o magistério não tem programas socioeconómicos ou soluções técnicas ou sistemas para oferecer. Depois do colapso do socialismo real, o Papa João Paulo II recomendou uma “economia empresarial”, uma “economia de mercado” e uma “economia livre” como formas de bom capitalismo (Centesimus annus, 42), enquanto o Papa Francisco fala antes de “economia social de mercado”, “economia social” e “economia de comunhão”[5].
O Papa Bento XVI acrescentou um aspeto inovador à compreensão dos mercados que tem a ver com a centralidade da pessoa humana no contexto empresarial. No contexto intelectual e cultural do pós-modernismo, o Papa Bento XVI abordou a questão dos sistemas socioeconómicos de uma forma única. O pós-modernismo rejeita todas as narrativas universais de significado: todo o significado e sentido na vida é uma escolha subjetiva. Como tal, cada um de nós senta-se numa nuvem sem ligação aos outros porque não há céu em comum que nos permita comunicar. Desta forma, o pós-modernismo rejeita implicitamente a noção de diferenças essenciais dada por um Criador ou pela natureza, substituindo-a pela noção de diversidade como resultado da escolha individual. A identidade de cada um é definida pela escolha e é líquida. As pessoas já não têm um perfil estável, ele pode mudar continuamente porque não são aceites limites objetivos de autodefinição. Sem diferença no sentido mais forte da palavra, a dualidade estável ou as relações não são possíveis porque pressupõem diferenças objetivas de pessoas e de qualidades, bem como compromissos duradouros com base nelas. Neste contexto, o Papa Bento XVI repensa a Santíssima Trindade na sua dimensão social. As Três Pessoas são relações subsistentes, por um lado na sua natureza e ao mesmo tempo diferentes na sua personalidade. De forma analógica, a personalidade humana não consiste na mera individualidade mas na comunhão de relações que tornam possível aquilo que é verdadeiramente humano em nós: o amor, a compaixão, a amizade, o dom, etc. O Papa Bento XVI atribui a capacidade de construir relações humanas também aos mercados: “o mercado, se houver confiança recíproca e generalizada, é a instituição económica que permite o encontro entre as pessoas, na sua dimensão de operadores económicos que usam o contrato como regra das suas relações e que trocam bens e serviços entre si fungíveis, para satisfazer as suas carências e desejos” (Caritas in veritate, 35).
Tal visão excede os modelos socioeconómicos existentes e encontra pouca ou nenhuma correspondência nos programas políticos contemporâneos. Usando a linguagem da Revolução Francesa: a igualdade está brasonada nas bandeiras do socialismo; e a liberdade nas do liberalismo. Onde está o partido político que luta realmente pela fraternidade?
Estas duas últimas secções sobre a ordem moral dominantes e sobre a centralidade da pessoa humana estão intimamente ligadas. A ética é a sabedoria prática do florescimento humano e, por isso, é essencialmente centrada na pessoa. A pessoa humana é de natureza relacional ou social e isto leva-nos à terceira secção sobre o bem comum, que está intrinsecamente ligada ao tudo o que foi dito até agora.
(Voltar ao conteúdo da unidade)
O bem comum tem precedência sobre o interesse económico individual
Que o contexto empresarial deve promover uma situação na sociedade que tem sido chamada Commonwealth, o bem comum, é um mantra que a Doutrina Social da Igreja repete incessantemente. Esta mensagem nem sempre é bem recebida pelos empresários que se sentem sobrecarregados com obrigações acrescidas que tornam o empreendedorismo excessivamente difícil. Os empreendedores precisam de poucos incentivos, eles próprios têm motivação suficiente. O que precisam é de proteção contra a excessiva carga fiscal e burocrática que lhes esgota a energia. Agir num contexto empresarial com perspicácia económica e com um espírito cristão que considera o florescimento humano central (tal como descrito nas secções anteriores) é uma forma de negócio que promove o bem comum. O que mais pode um empresário fazer? O que mais é se espera deles? Em concreto, que papel deve o estado desempenhar na vida económica? Para responder a estas questões precisamos de clarificar o conceito de bem comum tal como surge na Doutrina Social da Igreja.
O bem comum não é o mesmo que um bem público. Um bem público é um bem que é possuído publica ou comummente e que pode ser usado por toda a gente individualmente. Os exemplos incluem as ruas, os esgotos, a iluminação pública, etc. É evidente que os bens públicos contribuem de forma importante para o bem comum. O Concílio Vaticano II definiu o bem comum como “o conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição” (Gaudium et spes, 26 e 74).
Esta definição concebe o bem comum como algo exterior à pessoa ou ao próprio grupo, como uma estrutura, na qual as pessoas enquanto indivíduos ou grupos podem desenvolver as suas potencialidades. Isto faz mais lembrar a noção de bem público do que a de autêntico bem comum e, por esse motivo, tem sido também chamado “bem comum instrumental” (Lewis 2019, 254). O Papa Bento XVI completou assim esta noção com uma perspetiva mais relacional. Na sua encíclica social escreveu: “É o bem daquele «nós-todos», formado por indivíduos, famílias e grupos intermédios que se unem em comunidade social. Não é um bem procurado por si mesmo, mas para as pessoas que fazem parte da comunidade social e que, só nela, podem realmente e com maior eficácia obter o próprio bem” (Caritas in veritate, 7).
A inovação que o Papa Bento XVI fez explica o bem comum como o bem de ser e de agir em conjunto. O bem comum não é a soma dos bens individuais nem é a estrutura exterior das ações individuais, é o bem da comunalidade. O bem comum é um bem partilhado no sentido forte da palavra. Não pode ser alcançado sozinho por si mesmo ou através da divisão de um objeto que é possuído comumente. Se dividimos uma tarde e cada um leva um pedaço para o seu quarto e o come sozinho, dividimos um objeto partilhado, mas destruímos o bem comum. Por outro lado, quando partilhamos a mesma tarte numa refeição comum, criámos o bem comum de uma refeição e da conversação que surge durante a mesma. Beber uma cerveja sozinho é uma experiência agradável, mas beber uma com alguém cria muito mais comunidade. Da definição de estrutura na Gaudium et spes (26), o Papa Bento XVI passou para a noção de bem comum como um produto. Todos sabemos a diferença entre um produto e uma soma. Numa soma, qualquer adição pode ser zero sem que isso altere a soma (2+2+0=4). Num produto, se um fator for reduzido a zero, o produto é zero, ainda que todos os outros fatores sejam números mais elevados (2x2x0=0). Se uma pessoa de uma comunidade for violada na sua dignidade humana, a comunidade como um todo perde o seu bem comum.
Este conceito de bem comum tem levado a Doutrina Social da Igreja a referir-se às empresas como uma comunidade de pessoas (Centesimus annus, 35). Uma empresa é uma unidade produtiva, uma entidade submetida às necessidades do mercado e da eficiência. No entanto, nas suas operações deve haver espaço para relações pessoais e de amizade. De outra forma, faltaria coesão e motivação. Isto tem consequências importantes tanto para empregadores como para empregados. Do lado dos empregados, uma preocupação com o bem comum da empresa aumenta o sentido de responsabilidade, a motivação e a coesão que nos estimula a ir para lá do simples dever. Em tempos de crise, os empregados compreendem que os cortes salariais podem ser inevitáveis e que o sacrifício deve ser partilhado. A falta de recursos aumenta as tensões. E é precisamente nestes momentos que laços fortes entre colegas salvam uma empresa. Do lado dos empregadores, compreender a sua empresa como uma comunidade de pessoas dá-lhes um maior sentido de responsabilidade pelos seus trabalhadores. Faz com que evitem despedimentos durante tanto tempo quanto possível, encontrando alternativas que não coloquem em perigo a vida de uma família. Quando os cortes salariais são inevitáveis, então o dirigente da comunidade de pessoas corta também o seu próprio salário. Compreender a empresa como uma comunidade leva a que se reinvista parte do lucro na própria empresa. Isto pode ser feito através do financiamento de investigação e desenvolvimento ou através de programas que melhorem a segurança dos empregados ou o bem-estar dos trabalhadores. Há exemplos de empresas de sucesso que agem desta forma. O seu compromisso voluntário tem sido recompensado.
No entanto, tal como referido acima, o cerne do discurso da Igreja sobre o bem comum é o envolvimento do estado. Quanto é que o estado pode e deve intervir nos assuntos económicos? Desde a Quadragesimo anno, publicada em 1931, a Doutrina Social da Igreja tem insistido na necessidade de justiça social, sem definir totalmente esta expressão. Os autores mais credíveis entendem justiça social como uma forma moderna de se referir à justiça legal ou geral na terminologia de São Tomás de Aquino (Calvez e Perrin 1961, 133-161; Gregg 2019, 93-98; Kennedy 2019; Booth e Petersen 2020). De forma muito breve, o que isto significa é o seguinte: a justiça geral é a ordenação geral de todos os atos individuais, tanto das duas espécies de justiça particular (justiça comutativa e justiça distributiva), bem como os atos de todas as outras virtudes, em direção ao bem comum. Não deve ser confundida com a mera obrigação de respeitar as leis existentes, mas obriga-nos em consciência a contribuir para o bem comum mesmo que não existam leis que nos obriguem a fazê-lo. A justiça geral é também chamada de justiça legal por São Tomás de Aquino porque o bem comum é o objetivo de toda a lei. E escusado será dizer que São Tomás não reduziu a lei à lei positiva.
Por mais verdadeira que esta interpretação de São Tomás de Aquino seja, este entendimento de justiça social pelos autores mencionados falha, penso eu, o ponto crucial do uso que é feito pelas encíclicas sociais do termo justiça social. De Pio XI a Paulo VI, a Doutrina Social da Igreja colocou a tarefa de criar uma sociedade justa (e caridosa) sobre os ombros do estado, do governo e das autoridades públicas. Esta foi a novidade da expressão. Até ao início do século XX, a Igreja tinha defendido vigorosamente o seu próprio monopólio na caridade. Leão XII ainda escreveu a favor da rejeição de formas de alívio à pobreza organizadas pelo estado: “a caridade, como virtude, pertence à Igreja” (Rerum novarum, 30). Com tensões sociais crescentes, um desemprego massivo e depois da carnificina da Primeira Guerra Mundial entre as nações cristãs, o Papa Pio XI alterou o seu discurso e apelou às autoridades públicas para que exercessem as funções que a Igreja já não conseguia cumprir porque estava sobrecarregada com as necessidades da época.
No magistério mais recente, os Papas tornaram-se mais cautelosos nos seus apelos à intervenção estatal. O Papa João Paulo II estimula o assistencialismo e o estado social gastador, mas critica a asfixia da iniciativa económica pelos governos totalitaristas e apela às liberdades de todos os tipos em nome de Cristo. O Papa Bento XVI e o Papa Francisco continuaram esta tendência, principalmente o Papa Francisco. O Papa Bento XVI apela a uma redescoberta e revalorização da sociedade civil com a sua lógica de reciprocidade, dom e fraternidade, para agir ao lado da lógica das trocas (mercados) e da lógica do dever (estado). Isto fê-lo escrever sobre um grande desafio: “é mostrar, a nível tanto de pensamento como de comportamentos (…) que nas relações comerciais, o princípio de gratuidade e a lógica do dom como expressão da fraternidade podem e devem encontrar lugar dentro da actividade económica normal” (Caritas in veritate, 36). Isto não desqualifica ou desacredita o governo, mas elimina o seu monopólio na preservação do bem comum. O Papa Francisco vai ainda mais longe.
Contrariamente à perceção geral, o Papa Francisco não é a favor de um estado grande ou de subsídios estatais exceto em situações de crises humanitárias. A expressão “justiça social” tem sido por si usada muito raramente no seu pontificado. Em vez disso, fala da opção preferencial pelos pobres. E isto não é uma mudança meramente terminológica. A justiça social atribui tradicionalmente o papel de ator às autoridades públicas. A opção preferencial pelos pobres é um dever que recai sobre toda a sociedade e sobre cada um dos seus membros. Nas suas próprias palavras:
“Nas condições actuais da sociedade mundial, onde há tantas desigualdades e são cada vez mais numerosas as pessoas descartadas, privadas dos direitos humanos fundamentais, o princípio do bem comum torna-se imediatamente, como consequência lógica e inevitável, um apelo à solidariedade e uma opção preferencial pelos mais pobres. (…) Basta observar a realidade para compreender que, hoje, esta opção é uma exigência ética fundamental para a efectiva realização do bem comum.” (Laudato si, 158).
Nenhum Papa antes dele deixou tão claro que a promoção do bem comum é uma tarefa e um dever para todos nós. Isto também é verdade para os empresários. Na sua mensagem no Fórum Económico Mundial em 2014, apelou à comunidade empresarial que usasse a inteligência superior que os tornou ricos para encontrar formas de incluir os pobres na economia de mercado. Quando a pessoa humana está no centro, o dinheiro serve, não governa[6].
(Voltar ao conteúdo da unidade)
Conclusão
Como se tornou claro neste capítulo, a tradição da Doutrina Social da Igreja vê um contexto empresarial virtuoso de forma claramente positiva. A Igreja afirma aquilo que existe com uma visão informada pela fé, pela justiça e pela caridade. Para evangelizar as pessoas que vivem numa cultura ou num sistema, devemos amá-las. Num segundo e necessário passo, a Doutrina Social da Igreja chama os Cristãos e todas as pessoas de boa vontade a purificar os sistemas existentes e, acima de tudo, o seu próprio comportamento pessoal de qualquer pecado. Em particular, a Doutrina alerta contra os atos não éticos no contexto empresarial que são justificados por “leis económicas”; contra qualquer atitude que conduza os que estão em contexto empresarial a sucumbir às atrações da maximização do lucro a qualquer custo; e contra colocar os próprios interesses acima do bem comum de forma egoísta e de imprudente. Todas estas perspetivas normativas estão baseadas nos princípios perenes da Doutrina Social da Igreja: a dignidade humana, o bem comum, a solidariedade e a subsidiariedade. Cabe a cada indivíduo usar a sua consciência bem formada para encontrar o caminho cristão num mundo que tanto precisa da luz e do calor de Cristo.
(Voltar ao conteúdo da unidade)
Referências e leituras adicionais para esta secção
Beauchamp, T. L. and Childress J. F. (2001), Principles of Biomedical Ethics. Oxford: Oxford University Press, 4th Edition.
Bisschop, P., Kastoryano, S. and van der Klaauw, B. (2017), Street Prostitution Zones and Crime, American Economic Journal: Economic Policy 2017, 9(4): 28–63 https://doi.org/10.1257/pol.20150299
Booth, P. and Petersen, M. (2020), Catholic Social Teaching and Hayek’s Critique of Social Justice, Logos: A Journal of Catholic Thought and Culture, 23(1): 36-64.
Bradley Lewis, V. (2019), “Catholic Social Teaching on the Common Good,” in Catholic Social Teaching: A Volume of Scholarly Essays, 235-266. Edited by Bradley, G. V. and Brugger, E. C., Cambridge: Cambridge University Press.
Calvez, J-Y. and Perrin, J. (1961), The Church and Social Justice: The Social Teaching of the Popes from Leo XIII to Pius XII (1878 – 1958), 133-161, Chicago: Regnery.
Gregg, S. (2019), “Quadragesimo Anno (1931)” in Catholic Social Teaching: A Volume of Scholarly Essays. Edited by Bradley, G. V. and Brugger, E. C., 90-107, Cambridge: Cambridge University Press.
Hirschfeld, M. L. (2018), Aquinas and the Market: Toward a Humane Economy, Cambridge, Ms–London, UK: Harvard University Press.
Kennedy, R. (2019), Social Justice and Competing Visions of the Common Good Logos: A Journal of Catholic Thought and Culture, 22(2): 106-150.
Sen, A. (1987), On Ethics and Economics. Malden: Blackwell.
Smith, A. (1776), An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, edited by Campbell, R. H., Skinner A. S. and Todd W. B., Oxford: Oxford University Press (1976)), Glasgow edition of the Works and Correspondence of Adam Smith in the reprint by the Liberty Fund, Indianapolis (1981).
(Voltar ao conteúdo da unidade)
Encíclicas papais e outros documentos da Igreja referidos nesta secção
Francisco, 2015, Laudato si, carta encíclica:
https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html
Bento XVI, 2009, Caritas in veritate, carta encíclica:
https://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20090629_caritas-in-veritate.html
João Paulo II, 1991, Centesimus annus, carta encíclica:
https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_01051991_centesimus-annus.html
João Paulo II, 1987, Sollicitudo rei socialis, carta encíclica:
http://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_30121987_sollicitudo-rei-socialis.html
João Paulo II, 1981, Laborem exercens, carta encíclica:
https://www.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_14091981_laborem-exercens.html
Paulo VI, 1971, Octogesima adveniens, carta apostólica:
https://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/apost_letters/documents/hf_p-vi_apl_19710514_octogesima-adveniens.html
Paulo VI, 1967, Populorum progressio, carta encíclica:
http://www.vatican.va/content/paul-vi/pt/encyclicals/documents/hf_p-vi_enc_26031967_populorum.html
Vaticano II, Gaudium et spes, 1965, Constituição Pastoral Sobre A Igreja No Mundo Actual,
https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html
João XXIII, 1963, Pacem in terris, carta encíclica:
http://www.vatican.va/content/john-xxiii/pt/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_11041963_pacem.html
João XXIII, 1961, Mater et magistra, carta encíclica:
https://www.vatican.va/content/john-xxiii/pt/encyclicals/documents/hf_j-xxiii_enc_15051961_mater.html
Pio XI, 1931, Quadragesimo anno, carta encíclica:
https://www.vatican.va/content/pius-xi/pt/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19310515_quadragesimo-anno.html
Leão XIII, 1891, Rerum novarum, carta encíclica:
https://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html
(Voltar ao conteúdo da unidade)
Questões para discussão
Explique porque é que a economia e a ética são inseparáveis.
Discuta os fins para os quais a atividade empresarial deve ser orientada.
Discuta o significado da frase “um contexto empresarial virtuoso é uma vocação nobre”.
Quais são as responsabilidades dos diferentes atores e das instituições na sociedade para a promoção do bem comum?
O que é que as várias encíclicas sociais e outros documentos da Igreja têm a dizer sobre ética empresarial e como é que esses ensinamentos evoluíram ao longo do tempo?
(Voltar ao conteúdo da unidade)
Notas de rodapé
[1] Beauchamp e Childress chamam a estas perceções normativas intermédias “princípios de bioética”. Isto não funcionaria para a Doutrina Social da Igreja, onde os princípios são sublimes e as noções abstratas, o que requer uma maior praticabilidade.
[2] Sen (1987, pág. 10): “Os assuntos económicos podem ser extremamente importantes por questões éticas, incluindo a questão Socrática ‘Como devemos viver?’’”
[3] Neste sentido, a afirmação da Caritas in veritate (37) é incoerente: “Assim todas as decisões económicas têm uma consequência moral”. Não: todas as decisões económicas são uma decisão moral.
[4] A passagem aqui referenciada parafraseia Adam Smith na Riqueza das Nações I.viii, 36 (Smith, 1776).
[5] Ver Papa Francisco. 2016. Discurso na Entrega do Prémio Carlos Magno, 6 Maio 2016, https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2016/may/documents/papa-francesco_20160506_premio-carlo-magno.html e Papa Francisco. 2017. Discurso aos Participantes no encontro promovido pelo Movimento dos Focolares, 2 Fevereiro 2017, https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2017/february/documents/papa-francesco_20170204_focolari.html.
[6] Ver Papa Francisco, Mensagem no 44º Encontro Anual do World Economic Forum, 17 Janeiro 2014, https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/pont-messages/2014/documents/papa-francesco_20140117_messaggio-wef-davos.html.
(Voltar ao conteúdo da unidade)